Carnaval: É festa do povo, meu rei ?

O governador, o rei momo e o "clube da galinha"
Foto crédito: Secretaria da Cultura do DF

"Meu carnaval é outro"
(Frei Betto)

Carnaval

Ouço o apito de alerta à bateria, repicar dos tambores, o chacoalhar metálicos dos pandeiros, a marcação do bumbo, o gemido agônico da cuíca.

Sei que é carnaval. 

Festa de travestir-se no que não se é, euforia inescrupulosa, despir corpo e alma ao descompasso dos pés movidos pelo samba.

Meu carnaval é outro. 

Não o do repúdio moralista à nudez produzida para o olhar televisivo.

Nem o das escolas de samba na épica revelação de como a história pode ser contada por uma versão onírica. Nem o dos bailes em que máscaras e fantasias melhor traduzem o que somos, sem disfarces.

Meu carnaval é espiritual. Nele ressoam enredos abissais. Há um cortejo de virtudes que exercem sobre mim fascínio e medo. Há um cordão de arlequins e pierrôs cuja alegria deixa ensimesmada minha falta de coragem para me deixar levar.

Há um baile no salão profundo de minha subjetividade, no qual, sem máscara, se espelha minha verdadeira identidade. Meu carnaval é pura orgia. Porque me recolho na alcova da plena nudez e convoco o trio: o Pai, que é mais Mãe, o Filho e o Espírito Santo.

Às primeiras luzes do amanhecer já não sabemos quem é um e quem é outro. Somos todos imagem e semelhança de um e de outro. Mergulhados em ressaca mística.

Meu carnaval não tem a elegância das comissões de frente, a majestática apoteose dos carros alegóricos. Meu carnaval é uma festa na qual o espírito se despe de toda fantasia e se exibe às verdades mais atrozes.

Nele cubro-me de paetês e lantejoulas para aliviar o dom inefável de me saber morada divina. Faço de conta que sou apenas o que aparento, embora exposto à passarela repleta de gente que assiste, extasiada, ao desfile das bem-aventuranças.

Circulo pelos salões travestido de palhaço. Assim, rio dos senhores cheios de certezas, que julgam que a vida tem mais respostas que perguntas. Provo a comunhão amorosa com a natureza, o próximo, o Mestre Sala que faz o Universo dançar como cabrocha desnuda a exibir o lindo corpo salpicado de galáxias brilhantes.

Meu carnaval não se confina em três dias. Ele se estende por toda a vida.

Meu carnaval é acreditar que o reinado de Momo é prenúncio do futuro que nos aguarda, quando toda lágrima secará.

Porque Ele será tudo em todos e as portas de seu reino, escancaradas, acolherão todos ao eterno amor que cativa, arrebata, transubstancia, como deleitável fogo que jamais queima nem se apaga.

Meu carnaval é outro.

Frei Betto

Comenários: Meu carnaval também é outro. Outro fogo que começa na quarta-feira de cinzas, como bem disse Rachel Sheherazade sobre o tal Carnaval - festa do povo..

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