Em país de transgressores, afinal, as leis servem para quê?


Tateando um pouco, nunca houve entre os brasileiros condições de desenvolvimento de uma cultura e de uma prática de respeito à lei. Em parte, isso se deveu à nossa formação histórica e à nossa estrutura de classes; em parte, à nossa tradição legalista; em parte, ao fracasso das instituições policiais e judiciais em aplicar a lei, tanto em sua tarefa punitiva quanto na de proteger direitos. Fato é que não temos escolas de civismo.

A ambiguidade em relação à lei e à sua transgressão não podia deixar de chamar a atenção de nossos pensadores. Como era de esperar, eles desenvolveram interpretações conflitantes, apesar da preocupação comum com a formação de uma sociedade regulada. 

Para ilustrar a complexidade do tema, algumas dessas interpretações são consideradas realistas e outras, conservadoras. No fundo, todos partidários de uma orientação burkiana, que valoriza os costumes e práticas sociais; pôr a culpa da transgressão na própria lei, por seu idealismo e distanciamento dos costumes e práticas nacionais.

Os menos radicais não veem a lei como marco normativo, mas como medida civilizatória, pedagógica, bússola orientadora de um comportamento desejável a ser atingido no futuro. O formalismo, isto é, a introdução de uma distância entre a lei e os costumes, entre a ética e o etos, como estratégia de construção nacional, de mudança social e de ascensão individual.

A violação da lei, no Brasil da era lulopetista, tornou-se mecanismo de cooptação e agasalhamento de aliados no Poder. O "jeito", isto é, o desvio da lei tornou-se prática comum e corriqueira; quase um poder moderador entre castas que vivem no mais absoluto luxo, mesmo quando condenados pela justiça e cumprindo "penas" em belíssimas mansões, fruto do roubo escancarado dos cofres públicos em detrimento de rotunda maioria pobre que tem como estratégia de sobrevivência, o "jeitinho".

Houve tempo que até mesmo o liberal Roberto Campos chegou a interpretar o descumprimento da lei como "condição de sobrevivência do indivíduo e de preservação do corpo social diante do perigo de um atrito constante". A mesma posição foi adotada em outra esfera de comportamento, pelo teólogo Bernardino Leers, que interpreta o "jeito" como estratégia do povo de Deus para superar as dificuldades encontradas na obediência às normas absolutas pregadas pelo magistério da Igreja.

Crítico mais radical daquilo que chama de nosso idealismo utópico, Oliveira Viana identificou a origem do problema na distância existente entre o sentido público e ético do governo, implantado na legislação por elites voltadas para modelos externos, e as práticas da cultura popular. Tal distância levaria necessariamente 
à transgressão, à desmoralização da lei e do sistema como um todo. Nesse caso, a corrupção do sistema proviria exatamente da obediência às leis.

Analistas filiados à corrente liberal tenderam a pôr a culpa da transgressão nos transgressores. Entram na lista quase todos os nossos grandes liberais, Tavares Bastos, Silvio Romero, Rui Barbosa, Sérgio Buarque de Holanda, Raimundo Faoro e outros. A lei é, para eles, a civilização. É preciso ajustar a ela o comportamento de uma sociedade atrasada, voltada para interesses pessoais, familísticos, corporativos, 
estamentais. 

Nosso mundo é privatista, familista. Um mundo de Antígone, em conflito com o mundo da normatividade universalista, da racionalidade, do interesse geral, de Creonte. Análise mais recente e mais complexa é a de Roberto DaMatta, quando quebra a dicotomia entre lei e cultura e propõe a dialética entre casa e rua. O mundo que ele descreve, porém, é de ambiguidades, incertezas, tensões, tateamento.

Há transgressões, sempre houve, a novidade num mundo conectado é que a Internet permitiu uma maior percepção dessas transgressões, ainda que apenas circunscrita à camada social em melhor posição para perceber e se insurgir contra os transgressores, aquela que chamamos de classe média.

Isto se explica, porque, de uma lado, é a classe média que está mais sufocada pela lei em função de sua inserção profissional; é sobre ela que recai grande parcela dos impostos que mantém as castas na boa vida de fidalgos; é ela que menos se beneficia de políticas sociais. Ela não é dependente nem do poder privado nem do poder público. Parte cada vez menor dela é absorvida pela máquina estatal, cada vez mais inchada, onerosa e perdulária muito por conta de penduricalhos.

De outro lado, graças à alta escolaridade, tem condições de desenvolver uma visão crítica e não passiva da 
política e de seus agentes. É ela, a classe média, que em última análise forma a opinião pública do país, se por isso entendermos a opinião bem informada e crítica expressa na mídia e nos blogs, sobretudo, claro, aqui no Blog do Tato, modéstia à parte.

Pode-se dizer, com certeza, que a reação contra a transgressão varia na razão inversa do bem-estar da classe média urbana. Maior a classe média urbana e piores suas condições de vida, maior a grita por moralidade como nas manifestações gigantescas, como nunca antes vistas, de junho de 2013.
Foto: Manifestação gigante na Av. Paulista em 13 de março 2016. Seis milhões de brasileiros saíram às ruas exigindo o Impeachment de Dilma

Os baixos índices de crescimento econômico, o aumento de impostos decorrentes da corrosão do poder de compra sobre a renda familiar, a baixa qualidade da educação pública (fundamental, média e superior), a precariedade do sistema de assistência à saúde, o custo dos planos de saúde; tudo isso aliena a classe média, sobretudo a parcela empregada no setor privado. Nessa conjuntura de dificuldades extremas, a percepção da bandalheira dos políticos se aguça na Rede, atinge a grande mídia, os estádios e as ruas.

Hoje, há um nítido e crescente distanciamento entre representantes e representados. Há também um divórcio entre a opinião pública e a opinião popular. Para fazer essa distinção basta lembrar a frase de um ilustre mensaleiro do PT, fora do alcance da Justiça: 
  • "A opinião pública me condena, a opinião popular me absolve nas urnas."
Se considerarmos como parte da opinião pública todos os eleitores com segundo grau completo para cima, teremos cerca de 20% do eleitorado. O resto, 80% seria parte desta opinião popular alheia às mazelas das castas assentadas nos palácios.
Foto: Dias Tóffoli, ministro do STF, indicado pela ex-presidanta Dilma

Óbvio que a situação de hoje não se explica apenas pelo aumento da percepção da transgressão. É possível que a transgressão no mundo político brasileiro tenha-se tornado mais ampla e sistemática quando o próprio STF admitiu a denúncia de formação de quadrilha para vários dos principais acusados. Paradoxalmente, esse mesmo STF tornou-se muito mais tolerante, quase cúmplice das transgressões manifestas em altos escalões da República.

Anote-se, por fim, que maior que as fraudes fiscais, os decretos ilícitos, a soberba das castas e o desdém com a opinião pública foi o estelionato eleitoral praticado pela facção criminosa PT, ao abandonar a preocupação com a moralidade pública, apesar da maior eficiência da polícia federal em denunciar roubalheiras, aliada à total incapacidade do Judiciário de punir os culpados, contribuíram muito para aumentar a indignação pública.

O velho chavão se repete às pencas: a polícia prende, o juiz condena e o STF solta. Às prisões e denúncias segue-se imediatamente uma enxurrada de habeas corpus e liminares que soltam, protelam e, ao final, impedem a punição dos transgressores. Não bastassem estas aberrações, a população vê, estarrecida, criminosos, réus-confesso, cumprirem "penas" em mansões açambarcadas com dinheiro público, dinheiro tungado do suor de um povo que sofre as agruras dos desmandos de sucessivos desgovernos petistas.

Se não existe uma tradição de respeito à lei, não será com apelos moralistas que ele será criado. Poder-se-ia lembrar de um artigo da Constituição de Capistrano de Abreu, a qual obriga todos os brasileiros a ter vergonha na cara. Mas ela seria perfeitamente ineficaz. 

E não adianta também apelar à massa da população ou, sobretudo, à classe média, no sentido de respeitar a lei, se elas tem permanentemente diante dos olhos o exemplo do escárnio de políticos, servidores públicos e empresários, ricos em geral, burlando a lei constante e impunemente.

Urge uma faxina geral no nosso sistema judiciário, que também está completamente podre.

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