Brazil way of life
"O dinheiro cria na sociedade uma verdadeira classe privilegiada
que se mantém à parte e procura demonstrar às outras sua
pretensa preeminência."
(Tocquevile)
A Era Jacksoniana
"O americano típico do início do séc XIX era um promissor capitalista, um duro trabalhador, uma pessoa ambiciosa para quem a empresa era uma espécie de religião e por toda parte ele encontrava estímulos para ampliar o seu negócio. Se algum ódio de classe existia era voltado contra os
bancos e os banqueiros que dificultavam os empréstimos e tornavam a vida do cidadão cada vez mais difícil e cara"
A era jacksoniana é comumente reconhecida no folclore histórico americano como uma fase de
expansão da democracia, mas é muito pouco lembrado que foi também uma fase na expansão do capitalismo liberado. Em A Era Jacksoniana, Sellers, May e McMillen defendem a idéia de que "com a posse de Andrew Jackson, as forças do igualitarismo assumiram o poder no governo federal
[..] No dia da posse, Jackson abriu a Casa Branca a uma multidão turbulenta de bem
nascidos e humildes chocando a sociedade oficial mais antiga, mas anunciando inconfundivelmente a convicção do novo regime de que o homem comum era tão bom como o aristocrata.
Essa posse é sempre descrita como o marco simbólico da ascensão de novas classes sociais
e de sua novas posições na política americana. Ela é apresentada como uma invasão de
bárbaros, como se a cidade de Washington tivesse sido inundada por gentes das terras
do interior, rudes, turbulentas, vestidas de pano grosseiro, que percorriam as ruas embriagadas no meio de grande alarido [...]
Jackson foi a pé e de cabeça descoberta através das ruas enlameadas até o Capitólio para prestar juramento [...] “o reinado da população parecia triunfante”.
É conhecida a maneira pela qual Jackson começou seu governo distribuindo cargos públicos aos que o haviam eleito sem nenhuma preocupação com suas capacidades. Para ele qualquer cidadão honesto poderia ocupar postos administrativos e muito bem servir o seu país. Os jacksonianos gostavam de afirmar que o poder político não podia ser usado para obter privilégios econômicos:
- "Direitos iguais para todos, privilégios especiais para ninguém".
Apesar de se considerar a suposta "igualdade" como típica das sociedades democráticas e apesar de apresentar as vantagens que essa igualdade pode representar no desenvolvimento dos povos democráticos, Tocqueville também pondera os malefícios que dela podem advir social e politicamente.
Em primeiro lugar, ela pode e, invariavelmente, cria o seu contrário. Pode e, comprovadamente, desenvolve a pior das desigualdades, a conferida pela riqueza, tal como observada na sociedade americana.
- O dinheiro cria, inexoravelmente, na sociedade uma verdadeira classe privilegiada, uma casta artificial, que se mantém à parte e procura demonstrar às outras sua auto-requisitada preeminência.
Sem dúvida, nesse caso, o acúmulo de riqueza faz nascer uma classe de capitalistas mais abastada que se perpetua no tempo como uma elite com modelos de vida, ambições e valores, onde o lucro é o único bem, o último fim.
Porém, observa Tocqueville que, se por um lado, essa distinção pode e, como de fato, cria novas elites, a qual traz conseqüências ainda piores para a existência da liberdade que aquelas desenvolvidas pela aristocracia européia, igualmente abastada, ociosa, inepta, retrógrada e onerosa; por outro, essa diferença, numa sociedade plenamente democrática, poderia ser menos funesta que os preconceitos de nascimento e de profissão, pois, as desigualdades de classe não são consideradas pelos americanos como definitivas ou permanentes.
Em resumo, os homens, na América, como entre nós [os burgueses, na França], estão organizados de acordo com determinadas categorias no transcurso da vida social. Os hábitos comuns, a educação e,
sobretudo a riqueza estabelecem essas classificações. Mas, essas regras não são nem absolutas, nem inflexíveis, nem permanentes. Elas estabelecem distinções passageiras e não formam classes
propriamente ditas. Elas não concedem qualquer superioridade, mesmo de opinião, de um homem sobre outro, de tal modo que, mesmo se dois indivíduos não se vejam jamais nos mesmos salões,
se eles se encontrarem em uma praça pública um olhará o outro sem orgulho e o outro sem inveja. No fundo eles se sentem iguais e o são.
Essa idéia de democracia como uma sociedade igualitária é muito bem definida por Tocqueville a partir, tanto da existência real de uma situação de igualdade de costumes, quanto da perspectiva de que a sociedade, como um todo, possuía dela própria.
Assim, embora Tocqueville considerasse, como um dado importante, as diferenças de classe social
que a riqueza confere, certamente, não seria na igualdade econômica que a democracia buscaria seus alicerces. Portanto, mesmo que a riqueza pudesse ser vista como um fator gerador de desigualdade, outros fatores e valores mais significativos, para o povo americano, podem impedir que essa desigualdade venha a afetar, no seu âmago, as igualitárias e determinantes relações sociais da sociedade democrática.
Também seria preciso considerar que, nessa democracia, a riqueza é vista como algo que pode ser adquirido e, nesse momento pelo menos, não é a única forma de se obter poder. O exemplo do presidente Jackson, como um autêntico "self-made man" e de seus partidários é para ser observado e seguido. Tudo parece ser possível a qualquer um e a quase todos.
Ficou evidente, a história não omite, que nada disso foi válido para os escravos à época. Muito menos aos escravos modernos e seus capatazes, os do vil metal.
Tocqueville reconhece a contradição de sua teoria do desenvolvimento igualitário face à realidade que tem sob os olhos em 1835, em sua segunda viagem à Inglaterra.
Ao visitar Manchester, depara-se com a pujança das fábricas que, no mesmo cenário, apresentavam a céu aberto à miséria da vida dos trabalhadores e a imensa riqueza dos proprietários industriais.
Após descrever a situação de total penúria, sujeira e abandono do local em que viviam os trabalhadores classificando-a de novo inferno, que contrastava com "os imensos palácios da indústria", comenta:
- "Estas vastas construções impedem o ar e a luz de penetrar nas habitações humanas que dominam; elas a envolvem em uma perpétua neblina; aqui o escravo, lá o senhor; lá as riquezas de alguns poucos; aqui, a miséria do maior número; lá, as forças organizadas de uma multidão produzem para o lucro de um só, isto que a sociedade não havia ainda sabido oferecer; aqui, a fraqueza individual se mostra mais débil e mais desprotegida ainda que no meio dos desertos; aqui, os efeitos, lá as causas
- [...] Uma espessa e negra nuvem cobre a cidade. O sol aparece através da fumaça como um disco sem raios.
- É no meio deste dia incompleto que se movem sem cessar milhões de criaturas humanas
- [...] É no meio desta cloaca infecta que o maior rio da indústria humana vai alimentar e fecundar o universo. Deste esgoto imundo jorra o ouro puro. É ali que o espírito humano se aperfeiçoa e se embrutece; que a civilização produz suas maravilhas e que o homem civilizado se torna um selvagem, sem se dar conta disso.
- "Que ser inteiramente 'material' deve necessariamente se tornar um homem que faz a mesma coisa urante seis, oito, nove ou 12 horas, quase todos os dias de sua vida, com exceção do domingo?"
E, no entanto,
- "À testa das manufaturas, a ciência, a indústria, o amor do lucro. o Grande Capital, independente de sua origem ser legal ou não, [...] é assim que se dá a reunião de um povo pobre e de um povo rico, de um povo esclarecido e de um povo ignorante, da civilização e da barbárie"
Concluindo, segundo Tocqueville, "os homens precisariam agir no sentido de conciliar a liberdade, que é frágil e pela qual é preciso lutar, com a democracia que se move por um forte impulso e é fatal. Portanto, seria preciso adequar, em primeiro lugar, o ideal à realidade e, em segundo lugar a ação política inovadora que se encontra em constante defesa da liberdade ao processo igualitário que é real e incessante. Se a prática do ideal é conduzir a democracia, é preciso também que haja um modelo exemplar em direção ao qual a democracia deva ser levada. A realidade americana aparecia como a mais próxima desse ideal. Era onde a democracia se realizava. Era, também, onde a prática da liberdade havia encontrado o melhor terreno para florescer. Era preciso conhecê-la para construir o
modelo."
Para finalizar, nada melhor que lembrar ele mesmo, Tocqueville, para o qual sua única finalidade era de "mostrar, pelos exemplos da América, que as leis e sobretudo os costumes podem permitir a um povo plenamente democrático permanecer livre."
Bibliografia:
Hofstadter, Richard. The American Political Tradition, vintage books, N.Y., 1948.
Sellers, May e Macmillen. Uma reavaliação da História dos Estados Unidos, Zahar ed., Rio de Janeiro, 1985.
Nye, R.B. e Mopurgo, J.E. op. cit., p.52.
Tocqueville, Alexis. Voyage en Angleterre, Irlande, Suisse et Algérie, Gallimard, Paris, 1958.
Apud Mélonio. op.cit., p.35, nota 37
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