Páscoa: Chocolates e outras drogas.

Crucifixação - Salvador Dali

"Mesmo que Deus não existisse, a religião ainda seria santa e divina. 
Deus é o único ser que, para reinar, não tem sequer necessidade de existir" 
(Charles Baudelaire)
Num período ainda situado nos primórdios da história escrita da humanidade e mesmo nos períodos imediatamente subsequentes, até o aparecimento da filosofia grega, a forma exclusiva da consciência ideológica (ainda impregnada de elementos da concepção mítica) foi imposta pelo rigoroso monopólio da religião.

No séc. V a.d., entretanto, em uma sociedade extraordinariamente desenvolvida e florescente, a consciência ideológica passou a se revestir, em certos casos, de uma forma filosófica, que, ao lado das tradicionais explicações religiosas, apresentava interpretações leigas do mundo.

A religião não renunciou de boa vontade aos seus privilégios de exclusividade e patrocinou medidas práticas de repressão contra os filósofos; mas acabou tendo que se conformar e, para sobreviver, não teve outro jeito senão tornar-se também filosofante e passar a falar a linguagem dos novos tempos, dando conta das questões específicas destes novos tempos.

A rigor, não foi difícil à religião sobreviver, porque dentro das condições sociais típicas do escravismo, do feudalismo e do capitalismo, nas épocas posteriores, ela continuava a corresponder a uma necessidade socialmente sentida. Neste sentido, talvez se possa dizer que a consciência religiosa é a forma por excelência do pensamento alienado. Ou, para dizê-lo nos termos de Marx: 
  • "A religião é, na realidade, a consciência e sentimentos próprios do homem que ou ainda não se encontrou ou então já se perdeu. A religião é apenas o sol ilusório em torno do qual se move o homem enquanto não se move em torno de si mesmo"
(Contribution à la critique de la Philosophie du Droit de Hegel, MARX, 
in Oewvres philosophiques, vol.1, trad. Molitor, éd. Costes, Paris)

Enquanto a humanidade afinal reunificada não puder se reapoderar do seu próprio projeto, enquanto não for superada a alienação do homem em relação ao seu trabalho e ao fruto do seu trabalho, enquanto não se desenvolver a real dominação pelo homem tanto da realidade material quanto da realidade social, a consciência religiosa manifestará a extraordinária capacidade de resistência histórica que vem manifestando ao longo de todos estes séculos.
  • "Em geral, o reflexo religioso do mundo real só poderá desaparecer quando as condições de trabalho e vida prática mostrarem cotidianamente aos homens relações mais transparentes e racionais não apenas dos homens entre eles, mas também dos homens com a natureza. A vida social, cuja base está formada pela produção material e pelas relações em que esta implica, não será libertada da nuvem mística que a encobre senão no dia em que nela, vida social, venha a se manfiestar a obra de homens livremente associados, atuando conscientemente e como senhores do seu próprio movimento social" (Marx, O capital)
Adotada esta perspectiva na análise da religião, deixa de ter sentido uma atitude antirreligiosa.  Se a religião manifesta um estado de coisas dentro do qual ela é necessária, a única maneira de suprimi-la é agir tendo em vista a modificação de tal estado de coisas, de que decorre a necessidade da religião. 
  • O exercício de qualquer violência contra a consciência dos crentes não resultaria apenas inócuo: exprimiria também elevado teor de religiosidade na intolerância dos antirreligiosos.
De resto, um espírito verdadeiramente científico não pode deixar de se preocupar com a eficácia que fez com que a consciência religiosa atravessasse tão longo período da história da humanidade, demonstrando tamanha vitalidade.

Explicações como a de Barbusse, de que somente agora estamos a superar o período da "patologia teológica" na história  humana, refletem pouca sensibilidade para a validez histórica de que se revestiram as formulações religiosas em numerosas ocasiões nas quais elas contribuíram decisivamente para o avanço do conhecimento humano.

Não há, no fenômeno religioso encarado em si mesmo, nada de anormal ou de patológico. Se, nos casos de alguns indivíduos, as manifestações de sentimento religioso refletem desequilíbrio psíquico e até morbidez, isso não ocorre por serem eles crentes e sim por serem crentes doentes; da mesma forma que existem ateus doentes, judeus doentes, muçulmanos doentes, espíritas doentes, budistas doentes, etc.

Convém lembrar que, para determinadas estruturas sociais, a consciência geral normal - aqui subentendido como aquilo que é frequente - tem sido mesmo a consciência religiosa. A tendência para ver na religião "apenas uma neurose da humanidade" (como escreve Freud em Moisés e o Monoteísmo) incapacita o observador para uma justa compreensão das linhas de força apresentadas pelo pensamento religioso dentro de determinadas condições históricas concretas.
  • "A história das ciências - escreve Michel Verret - não nos autoriza, de modo algum a opor mecanicamente o desenvolvimento do conhecimento científico às formas de cultura míticas e religiosas que o precederam"
E conlui:
  • "A oposição entre os dois termos e passagem de um ao outro pressupõem, com efeito, a unidade dialética entre ambos"
Pois bem, qual a questão central?

O sentido da vida. Assim, desde o seu primeiro equacionamento mais ou menos consequente, encontrou nas condições vigentes uma resposta pronta de tipo religioso. Como escreveu o filósofo polonês Adam Schaff:
  • "Quando se é crente - aquele que crê em algo transcendente; vale, portanto, tanto para católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, espíritas, budistas, etc. -, a questão se resolve de maneira muito simples: a vida tem sempre um sentido (quer dizer, vale a pena viver, quaisquer que sejam as circunstâncias), pois mesmo o sofrimento, a dor e a morte são conformes à intenção do Ser Supremo, que nos preparara, em compensação, uma recompensa na outra vida, ou que nos aplica um castigo terreno pelos nosso pecados" 
(La pensée, revue du rationalisme moderne, nº101, Paris)

Na medida em que a explicação contida na resposta religiosa, antes mesmo de ser elaborada, já correspondia a uma necessidade sentimental e inteuitivamente sentida pelos homens, em decorrência das condições históricas, ela tinha garantida a sua aceitação, difusão e vigência, antes mesmo do aperfeiçoamento da sua racionalização.

Kant descreveu, em termos muito interessantes porque insuspeitos, na sua Crítica da razão prática, como encara o crente típico (que Kant chama de "o homem honesto") a racionalização da sua fé:
  • "O homem honesto pode perfeitamente dizer: eu quero que exista um Deus, que minha existência neste mundo seja ainda, fora da conexão natural, uma existência num puro mundo do entendimento, a fim de que a minha duração seja infinita; eu me agarro firmemente a isso e não deixo que me levem essas crenças, pois este é o único caso em que o meu interesse - que eu não posso absolutamente abandonar - determina inevitavelmente o meu julgamento, sem levar em conta as sutilezas e mesmo que eu não tenha a opor-lhes outras sutilezas mais especiosas, contestando-as"
O poeta Baudelaire também exprimiu admiravelmente o caráter essencialmente cego como que, na sua gênese, a necessidade da fé é experimentada pelos crentes, escrevendo:
  • "Mesmo que Deus não existisse, a religião ainda seria santa e divina. Deus é o único ser que, para reinar, não tem sequer necessidade de existir" 
(Fusées, in Jornaux intimes, Charles BADULAIRE, éd. G. Crès et Cie., Paris)
Leandro Konder
(in Marximo e Alienação - Contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação. ExpressãoPopular, 2009.)

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