A valsa acabara o bis

[...] 
Mas da sombra das árvores em frente, umas quatro ou cinco pessoas, paralisadas pela magnitude da música, tinham por alegria, só por pândega, pra desopilar, pra acabar com aquela angústia miúda que ficara, nem sabiam! tinham... enfim, pra fazer com que a vida fosse engraçada um segundo, tinham arrebentado em aplausos e bravos. 

E todos, com os aplausos, todos, o grupo da portuguesa, a mocetona com os manos já mansos, os perseguidores da porta, dois ou três mais longe, todos desataram na risada. 

Só o violinista não riu. Era a primeira consagração. E o peitinho curto dele até parou de bater.

Soaram duas horas num relógio de parede. Os que tinham relógio, consultaram. Um galo cantou. O Canto firme lavou o ar e abriu o orfeão de toda a galaria do bairro, uma bulha encarnada radiando no céu lunar. O violinista reiniciara a valsa, porque tinham ido pedir mais música a ele. Mas o violino, bem correto, só sabia aquela valsa mesmo. E a valsa dançava queixosa outra vez, enchendo os corações.

_ Eu numa varsa dessa, mulher comigo, eu que mando!

E olhou a portuguesa bem nos olhos. Ela baixou os dela, puros, umedecendo os lábios devagar. Os outros ficaram com ódio da declaração do guarda lindo, bem arranjado na farda. Se sentiram humilhados nos pijamas reles, nos capotes mal vestidos, nos rostos sujos de cama. Todos, acintosamente, por delicadeza, ocultando nas mãos cruzadas ou enfiadas nos bolsos, a indiscrição dos corpos. A portuguesa, em êxtase, divinizada, assim violentada altas horas, por sete homens, traindo pela primeira vez, sem querer, violentada, o marido da granja.

Na porta da casa, a italiana triunfante distribuía o café. Um momento hesitou, olhando o guarda do outro lado da rua. Mas nisto fagulhou uma risadinha em todos lá no grupo, decerto alguma piada sem-vergonha não! não dava café ao guarda! Pensou na última xícara, atravessou teatralmente a rua olhando o guarda, ele ainda imaginou que a xícara era pra ele. E a italiana entrou na casa dela levando o café para o marido na cama, dormindo porque levantava às quatro, com o trabalho em Pirituba.

Foi um primeiro mal-estar no grupo da portuguesa: todos ficaram com vontade de beber um café bem quentinho. Se ela convidasse... Ela bem que euria mas não achava razão. O guarda se irritou, qual! não tinha futuro! assim com tanta gente ali... Perdera o café. Ainda inventou ir até a casa, saber se a senhora não precisava de nada. Mas a italiana olhara pra ele com tanta ofensa, a xícara bem agarrada na mão, que um pudor o esmagou. Ficou esmagado, desgostoso de si, com um princípio de raiva da portuguesa. De raiva, deu um trilo no apito e se foi, rondando os seus domínios.

Os perseguidores tinham bebido o café, já agora perfeitamente repostos em suas consciências... Lhes coçava um pouco de vergonha na pele, tinham perseguido quem?... Mas ninguém não sabia. Uns tinham ido atrás dos outros levados pelos outros, seria ladrão?...

_ Bem vou chegando.
_ É. Não tem mais nada.
Boa-noite, boa-noite...

E tudo se dispersou. Ainda dois mais corajosos acompanharam a portuguesa até a porta dela, na esperança nem sabiam do quê. Se despediram delicados, conhecedores de regras, se contando os nomes próprios, seu criado.

Ela, fechava a porta, perdidos os últimos passos além, se apoiou no batente, engolindo silêncio. Ainda viria algum pregava nela, agarrava... Amarrou violentamente o corpo nos braços, duas lágrimas rolaram insuspeitas. Foi deitar sem ninguém.

A rua estava de novo quase morta, janelas fechadas. 
A valsa acabara o bis. 

Sem ninguém. Só o violinista estava ali, fumando, fumegando muito, olhando sem ver, totalmente desamparado, sem nenhum sono, agarrado a não sei que esperança de que alguém, uma garota linda, um fotógrafo, um milionário disfarçado, lhe pedisse pra tocar mais uma vez. Acabou fechando a janela também.

Lá na outra esquina do outro quarteirão, ficara um último grupinho de três, conversando. 

Mas é que lá passava bonde.
(1930-1941-1942)

NOTA: Este conto é desenvolvimento de uma das croniquetas historiadas que, sob os pseudõnimos de Luis Pinho e Luis Antônio Marques, publiquei no "Diário Nacional" de São Paulo em 1931.

Mário de Andrade - Contos Novos

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