Acabou a Valsa

LADRÃO

_ Pega!

O berro, seria pouco mais de meia-noite, crispou o silêncio no dormido bairro do Morumbambi, acordou os de sono mais leve, botando em tudo um arrepio de susto. O rapaz veio na carreira desabalada pela rua.

_ Pega!

Nos corpos entrecortados, ainda estremunhando na angústia indecisa, estalou nítida, sangrenta, a consciência do crime horroroso. O rapaz estacara numa estralada de pés forçando pra parar de repente, sacudiu o guarda estatelado:

_ Viu ele!

O "poliça" ainda sem nexo, puxando o revólver:

_ Viu ele?

_ P...

Não perdeu tempo mais, disparou pela, porque lhe parecera ter divisado um vulto correndo na esquina de lá. O guarda ficou sem saber o que fazia, porém da mesma direção do moço já chegavam mais dois homens correndo. O guarda eletrizado gritou:

_ Ajuda! e foi numa volada ambiciosa na cola do rapaz.

_ Pega! Pega! os dois perseguidores novos secundaram sem parar. alcançaram o moço na outra esquina, se informando com um retardatário que só àquelas horas recolhia.

_ ... é capaz que deu a volta lá em baixo...

No cortiço, a única jenal de frente se abriu, inundando de luz a esquina. O retardatário virou-se para os que chegavam:

_ Não! Voltem por aí mesmo. Ele dobrou a esquina lá de baixo! Fique você, moço, vigiando aqui! Seu guarda, vem comigo!

Partiu correndo. Visivelmente era o mais expedito, e o grupo obedeceu, se dividindo na carreira. O rapaz desapontara muito por ter de fica inativo, ele!

Justo ele que viera na frente!... No ar umedecido, o frio principiou caindo vagarento. Na janela do cortiço, depois de mandar pra cama o homem que aparecera atrás dela, uma preta satisfeita de gorda assuntava, Viu que a porta do 26 rangia com meia-luz e os dois Moreiras saíram por ela, afobados, enfiando os paletós. O Alfredinho até derrubou o chapéu, voltou pra pegar, hesitou, acabou tomando a direção do mano.

O guarda com o retardatário, já tinham dobrado a esquina lá de baixo. Uma ou outra jenal acordava numa cabeça inquieta, entre agasalhos. Também os dois perseguidores que tinham voltado caminho, já dobravam a outra esquina. Mas foi a preta, na calma, que percebeu que o quarteirão fora cercado.

_ Então decerto ele escondeu no quarteirão mesmo.

O rapaz que só esperava um pretexto pra seguir na perseguição, deitou na carreira. Parou.

_ A senhora então fique vigiando! Grite se ele vier!

E se atirou na disparada, desprezando escutar o "Eu não! Deus te livre!" da preta, se retirando pra dentro porque não queria história com o cortiço dela não. Pouco depois do Moreiras, virada a esquina de baixo, o rapaz alcançou o grupo dos perseguidores, na algazarra. Um dos manos perguntava o que era. E o moço:

_ Pegaram!

_ Safado.. ele...

_ Deixa de lero-lero, seu guarda! assim ele escapa!

Aliás fora tudo um minuto. vinha mais gente chegando.

O que foi?

_ Eu vou na esquina de lá, senão ele escapa outra vez!

_ Vá mesmo! Olha, vá com ele, você, para serem dois.

Seu guarda! o senhor é que pode pular no jardim!

_ Mas é que...

_ Então bata na casa, p...

O "poliça" inda hesitou um segundo, mas de repente encorajou.

_ Vam'lá!

Foram. Foi todo o grupelho, agora umas oito pessoas. Ficou só o velho que já não podia nem respirar da corridinha. Os dois manos, meio irritados com a insignificância deles a que ninguém esclarecera o que havia, ficaram também, castigando os perseguidores como ficarem. 

Lá no escuro do ser estavam desejando que o ladrão escapasse, só pra o grupo não conseguir nada. Um garoto de rua estava ali rente, se esfregando tremido em todos, abobalhado de frio. Um dos Moreiras se vingou:

_ Vai pra casa, guri!... de repente vem um tiro...

_ Será que ele atira mesmo! perguntou o baita que chegava.

E o velho:

_ Tá claro! Quando o Salvini, aquele um que sufocou a mulher no Bom Retiro, ficou cercado...

Mas de súbito o apito do guarda agarrou trilando nos peitos, em firmatas alucinantes. Todos recuaram, virados pro lado do apito. Várias janelas fecharam.

O grupo estacara em frente de umas casas, quase no meio do quarteirão. Eram dois sobradinhos gêmeos, paredes-meias, na frente e nos lados opostos os canteiros de burguesia difícil. Os perseguidores trocavam palavras propositalmente em voz muito alta. O homem decerto ficava amedrontado com tanta gente... Se entregava, era inútil lutar... Se qual das casas bater? o que vira o fugitivo pular na jardinzinho, quem sabe um dos rapazes guardando a esquina, não estava ali pra indicar. Aliás ninguém pusera reparo em quem falara. Os mais cuidadosos, três, tinham se postado na calçada fronteira, junto ao portão entreaberto, bom pra esconder. Se miravam ressabiados, com um bocado de vergonha. Mas um sorrindo:

_ Tenho família.

_ Idem.

_ Pode vir alguma bala...

_ Eu me armei, por via das dúvidas!

Quase todas as janelas estavam iluminadas, botando um ar de festa inédito na rua. Saía mais gente encapuçada nas portas, coleção morna de pijamas comprados feitos, transbordando pelos capotes mal vestidos. O guarda estava tonto, sustentando posição aos olhos do grupo que dependia dele. Mas lá vinham mais dois "poliças" correndo. Aí o guarda apitou com entusiasmo e foi pra bater numa das casas. Mas da janela da outra jorrou de chofre no grupo uma luz, todos recuaram. Era uma senhora, ainda se abotoando.

_ Que é! que foi que houve, meu Deus!

_ Dona, acho que entrou um homem na sua casa que...

_ Ai, meu Deus!

_ ... a gente veio...

_ Nossa Senhora! meus filhos!

Desapareceu na casa. De repente escutou-se um choro horrível de criança lá dentro. Um segundo todos ficaram petrificados. Mas era preciso salvar o menino e à noção de "menino" um ardor de generosidade inflamou todos. Avançaram, que pedir licença nem nada! uns pulando a gradinha, outros já se ajudando a subir pela janela mesmo, outros forçando a porta.

Que se abriu. A senhora apareceu, visão de pavor, desgrenhada, com as três crianças. A menina, seus oito anos, grudada na saia da mãe, soltava gritos como se a tivessem matando. A decisão foi instantânea, a imagem da desgraça virilizara o grupo.

A italiana de uma das casas operárias defronte, vira tudo, nem se resguardava: veio no camisolão, abriu com energia passagem pelos homens agarrou a menina nos braços, escudando-a com os ombros contra tiros possíveis, fugira pra casa. Um dos homens imitando a decidida agarrara outra criança, e empurrando a senhora com o menorzinho no colo, levara tudo se esconder na casa da italiana. 

Os outros se dividiram.

(Não perca, amanhã, o próximo capítulo desta instigante estória de Mário de Andrade aqui no Clipping do Tato)

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