Eis que a valsa triste acabou
Barafustaram(*) pela casa aberta, alguns forçaram num átimo a porta vizinha, tudo fácil de abrir, donos em viagem, a casa se iluminou toda. Veio um gritando na janela do sobrado:
_ Por trás não fugiu, o muro é alto!
_ Ói lá!
Era a mocetona duma das casas operárias fronteiras, a 'vanyti-case" de metalzinho esmaltado na mão, largara de se se empoar, apontando. Toda a gente parou estarrecida, adivinhando um jeito de se resguardar do facínora. Olhara pra mocetona. Ela apontava no alto, aos gritos. Era no telhado. Um dos cautelosos, não se enxergava bem por causa das árvores, criou coragem, se abaixou e pôde ver. Deu um berro, avisando:
_ Esta lá!
E veio feito uma bala, atravessando a rua, se resguardar na casa onde empoleirara o ladrão. Os dois comparsas dele o imitaram. As janelas em frente se fecham rápidas, bateu uma escureza sufocante. E os "poliças", o rapaz, todos tinham corrido pra junto do homem que vira, se escondendo com ele, sem saber do que, de quem, a evidência do perigo independendo já das vontades. Mas logo um dos "poliças" reagindo, sacudiu horrorizado, fazendo-o voltar a si, perguntando gritado, com raiva. E a raiva contra o cauteloso dominou o grupo. Ele enfim respondeu:
_ Eu também vi... (mal podia falar) no telhado...
_ Dissesse logo!
_ Está no telhado!
_ Vá pra casa, medroso!
_ Medroso não!
O rapaz atravessou a rua correndo, pra ver se enxergava ainda. O grupo estourou de novo pelas duas casas a dentro.
_ Ele não tem pra onde pular!
_ Coitado!
_ Que cuidado! ele que venha!
_ Falei "coitado"
Nos quintais dos fundos mais gente inspecionava o telhado único das casas gêmeas. Não havia por onde fugir. E a caça continuava sanhuda. Os dois sobrados foram esmiuçados, quarto por quarto, não houve guarda-roupa que não abrissem, examinaram tudo. Nada.
_ Mas não há nada! um falou.
_ Quem sabe se entrou no forro?
_ Entrou no forro!
_ Tem clarabóia?
O rapaz, do outro lado da rua, examinara bem. Na parte de frente do telhado, positivamente o homem não estava mais. Algumas janelas se entreabriram de novo, medrosas, riscando luz nas calçadas.
_ Pegaram?
_ P...
Mas alguém lhe segurara o braço, vou com defesa.
_ Meu filho! olhe a sua asma! Deixe, que os outros pegam! Está tão frio!...
O rapaz, deu um desespero nele, a assombração medonha da asma... Foi vestindo maquinalmente o sobretudo que a mãe trouxera.
_ Olha!... ah!, não é... Também não sei pra que o prefeito põe tanta árvore na rua!
_ Mas afinal o que foi, hein? perguntaram alguns, chegados tarde demais pra se apaixonarem pelo caso.
_ Eu nem não sei!... diz-que estão pegando um ladrão.
_ Vamos pra casa, filhinho!...
... aquele fantasma da sufocação, peito chiando noite inteira, nem podia mais nada... Virou com ódio pro sabetudo:
_ Quem lhe contou é ladrão?
Brotou em todos a esperança de alguma coisa pior.
_ O que é, hein?
A pergunta vinha da mulher sem nenhum prazer. O rapaz olhou-a, aquele demônio da asma... deu de ombros, nem respondeu.
Ele mesmo nem sabia certo, entrara do trabalho, apenas despira o sobretudo, ainda estava falando com a mãe já na cama, pedindo a bênção, quando gritaram "Pega!" na rua. Saíra correndo, vira o guarda não muito longe, um vulto que fugia, fora ajudar. Mas aquele demônio medonho da asma... O anulou um desesperança rancorosa. Entre os dentes:
_ Desgraçado...
Foi-se embora. De raiva. A mãe mal o pôde seguir, quase correndo, feliz! feliz por ganhar o filho àquela morte certa.
Agora a maioria dos perseguidores saíra na rua. Nem no interior do telhado encontraram o homem. Como fazer?
_ Ficou gente no quintal, vigiando?
_ Chi! tem pra uns deiz decidido lá!
Era preciso Calma. Lá na janela da mocetona operária começara um bulha desgraçada. Os irmãos mais novos estavam dando um baile, nela, primeiro insultando, depois caçoando que ela nem não tinha visto nada, só medo.
Ela jurava que sim, se apoiava no medroso que enxergara também, mas ele não estava mais ali tinha ido embora, danado de o chamarem medroso, esses bestas!
A mocetona gesticulava, com o metalzinho da "vanity-case" brilhando no ar. Afinal acabou atirando com a caixinha bem na cara do irmão próximo e feriu. Veio a mãe, veio o pai, precisou vir mais gente, que os irmãos cegados com a gota de sanque queriam massacrar a mocetona.
Organizou-se uma batida em regra, eram uns vinte. As demais casas vizinhas estavam sendo varejadas também, quem sabe... Alguns foram-se embora que tinha muita gente, não eram necessários mais. Mas paravam pelas janelas, pelas portas, respondendo. Nascia aquela vontade de conversar, de comentar, lembrar casos. Era como se se conhecessem sempre.
Te lembra, João, aquele bebo no boteco da...
_ Nem me!...
Não encontraram nada nas casas e todos vieram saindo para as calçadas outra vez. Ninguém desanimara, no entanto. Apenas despertara em todos uma vontade de alívio, todos certos que o ladrão fugira, estava longe, não havia mais perigo pra ninguém.
O guarda conversava pabulagem, bem distraído num grupo, do outro lado da rua. Veio chegando, era a vergonha do quarteirão, a mulher do prtuguês das galinhas. Era uma rica, linda, com aqueles beiços largos, enquanto o Fernandes quarentão lá partia no "Ford" passar três, quatro dias na granja de Santo André!
Ela quem disse ir com ele! Chegava o entregador da "Noite", batia, entrava. Ela fazia questão de não ter criada, comia de pensão, tão rica! Vinha o mulado da marmita pois entrava! E depois diz-que vivia sempre com doença chamando cada vez era um médico novo, desses que ainda não têm automóvel. Até o padeirinho da tarde, que tinha só... quinze? dezesseis anos? entrava, ficava tempo lá dentro.
O jornaleiro negava zangado, que era só pra conversar, senhora boa, mas o entregadorzinho do pão não dizia nada, ficava se rindo, com sangue até nos olhos, de vergonha gostosa.
Foi um silêncio carregado, no grupo, assim que ela chegou. As duas operárias honestas se retiraram com fragor, facilitando os homens. Se espalhou um cheiro por todos, cheiro de cama quente, corpo ardente e perfumado recendente. Todos ficaram que até a noite perdera a umidade gélida. De fato, a neblininha se erguera, e a cada uma janela que fechava, vinha pratear mais forte os paralelepípedos uma calma elevada de rua.
Vários grupos já não tinham coesão possível, bastante gente ia dormir. Por uma das janelas agora, pouco além das duas casas, se via um moço magro, de cabelo frio escorrendo, num pijama azul, perdido o sono, repetindo o violino. Tocava uma valsa que era boa, deixando aquele gosto de tristeza no ar.
Nisto a senhora não pudera mais consigo, muito inquieta com a casa aberta em que tantas pessoas tinham entrado, apareceu na porta da italiana. Esta insistia com a outra para ficar dormindo com ela, a senhora hesitava, precisava ir ver a casa, mas tinha medo, sofria muito, olhos molhados, sem querer.
A conversa vantajosa do grupo da portuguesa parou com a visão triste. E o guarda, sem saber que era mesmo ditado pela portuguesa, heróico se sacrificou. Destacou-se do grupo insaciável, foi acompanhar a senhora (a portuguesa bem que o estaria admirando), foi ajudar a senhora mais a italiana a fechar tudo. Até não havia necessidade dela dormir na casa da outra, ele ficava guardando, não arredava pé. E sem querer, dominado pelos desejos, virou a cara, olhou lá do outro lado da calçada a portuguesa fácil. Talvez ela ficasse ali conversando com ele, primeiro só conversando, até-de-manhã...
Alguns dos perseguidores, agrupados na porta da casa, tinham-se esquecido, naquela conversa apaixonada, o futebol do sábado. Afastaram-se, deixando a dona entrar com o guarda. Olharam-na com piedade mas sorrindo, animando a coitada. Nisto chegou com estalidos seu Nitinho e tudo se resolveu. Seu Nitinho era compadre da senhora, muito amigo da família, morava duas quadras longe. Viera logo com a espingarda passarinheira dos domingos, proteger a comadre. Dormiria na casa também, ela podia ficar no seu bem-bom com os filhos, salva com a proteção. E a senhora mais confiante entrou na casa.
_ É, não há nada.
Foi um alívio em todos. A italiana já trazia as crianças se rindo, falando alto, gesticulando muito insistindo na oferta do leite. Pois a italiana assim mesmo conseguiu vencer a reserva da outra, e invadiu a cozinha, preparando um café. A lembrança do café animou todos. Os perseguidores se convidaram logo, com felicidade. Só o pobre do guardinha, mais uma vez sacrificado, não pode com o sexo, foi-se reunir ao grupo da portuguesa.
Eis que a valsa triste acabou.
(*) Irromper; entrar violentamente.
(Mas esta estória ainda não acabou. Saiba, amanhã, aqui mesmo no Clipping do Tato, o seu desfecho)
Comentários