Os Corvos: A Imprensa na Gaveta do Poder

Ao primeiro sinal do fim, chegam os corvos

Por Orivaldo Perin

Vou responder com coisas que discutimos na redação, no dia-a-dia da feitura do jornal, naquilo que costumamos chamar de calor da primeira página. Atualmente a imprensa, de um modo geral, está tendo uma cobrança muito grande por parte da sociedade brasileira, e costumamos dizer que ela aumenta – somos tidos como o quarto poder – na medida em que os outros poderes instituídos não funcionam. Se estes não cumprem seus papéis, a tendência é que o leitor exija da imprensa essa atuação.
  • O jornal não governa, não elabora leis e sequer julga – se bem que a imprensa, por sua prepotência natural, comete julgamentos terríveis como o da Escola de Base, em São Paulo onde, a partir de um erro de informação, pessoas inocentes foram acusadas de abusar sexualmente de crianças.
Então, qual é de fato a força da imprensa? Acho que ela é elástica, aumentando na medida em que os demais poderes não funcionam e diminuindo na proporção inversa. Ouso dizer que, em países mais desenvolvidos, a imprensa não tem tanto poder, embora tenha derrubado um presidente do país mais forte do mundo. Procuro analisar isso pelo tamanho das tiragens em relação à população. São muito baixas, mesmo nos países adiantados. As maiores acontecem no Japão, que tem o maior nível de escolaridade do mundo. Em outros lugares, a relação é semelhante à nossa. Também é possível analisar o poder da imprensa com base nas pesquisas sobre as instituições desses países. Nas últimas que foram realizadas, pudemos reparar que, lamentavelmente, a imprensa está colocada quase no mesmo patamar da política.

Começaria dizendo que temos hoje uma grande carência de mão-de-obra qualificada. É difícil uma universidade colocar na redação um jornalista pronto. E creio que não é só este que padece dessa deficiência. Como qualquer outro profissional, ele precisa treinar antes de ter sua carteira assinada. Mas nossa área tem uma coisa estranhíssima: o sindicato impede o estágio. O cidadão que está aprendendo na faculdade não pode atuar nas redações. Mas todos os jornais encontraram uma saída e burlam esse dispositivo.

Apesar disso, a preparação do jornalista brasileiro de hoje é muito falha. O repórter chega na redação achando que sabe tudo e considerando-se uma sumidade, que mais tarde vai virar uma espécie de dono do mundo. Essa tendência à prepotência só vai se dissolvendo com o tempo de redação e de rua, conforme o tempo de ralação, como se diz. O primeiro passo é tentar dar um banho nele, para que ponha os pés no chão e sinta que as coisas são diferentes, que é preciso um pouco de humildade até entender os segredos da atividade. O recém-habilitado traz consigo o que adquiriu, de forma limitada, em seu próprio grupo social. A tendência é que transfira isso para o dia-a-dia profissional. Se teve uma formação agressiva, será agressivo. Na redação, será um espelho do que aprendeu na escola. Essa é uma dificuldade muito grande.

Para mim, nenhuma profissão exige tanto preparo intelectual, rapidez de raciocínio e capacidade de tirocínio quanto a nossa. Para andar nos limites que ela impõe, você tem de estar apto e não pode cometer deslizes. É o grande segredo desse negócio, e isso só vem com o tempo. É preciso uma quilometragem altíssima para ter equilíbrio emocional, saber diferenciar o certo do errado, ter um senso de justiça, de bem comum. Enfim, essas coisas todas que fazem parte da função cívica e do papel social que, segundo Alberto Dines, a imprensa possui (?).

O lucro e o dever social da imprensa

Quando você entra na redação, isso é um grilo que fica o tempo inteiro na cabeça. O jornal tem um papel social claro. Você sai da faculdade e chega no lugar de trabalho plenamente consciente de que o jornal está aí para ajudar a sociedade a viver melhor. Mas também sabe que tem um patrão que está ganhando dinheiro com aquilo, que o jornal precisa de anúncios para poder sair.

O secretário de redação é encarregado de distribuir o jornal no dia-a-dia. O que chamamos de boneca é um caderno com a formatação do dia seguinte, quantas páginas vai ter etc. Isso é ditado pelo volume de publicidade e, querendo ou não, você depende do anúncio da iniciativa privada, do governo, do poder. É aí que você mede a sua independência. Como? Depois de vinte e seis anos no ramo, sei que é um negócio complicadíssimo.

Costumo dizer que era mais fácil lidar com essas coisas quando comecei, no tempo da ditadura militar, porque o inimigo era comum a todas as redações e a todos os profissionais. Assim, havia uma maneira mais ou menos uniforme de ação. Quando colegas se encontravam nas ruas, as conversas eram semelhantes. Hoje, a dificuldade é identificar quem é o inimigo dentro de uma redação.

No tempo da ditadura, a gente sabia direitinho quais os jornais que estavam na gaveta do poder. Hoje, não, pois é possível camuflar, embora as redações continuem oposicionistas. Essa alma de PT de todo repórter é adquirida na faculdade, e é um negócio que atrapalha, porque é preciso ter dois pesos.
  • O jornalismo é [ou deveria ser]a arte da busca da isenção e, se você não tentar ser isento, jamais será um bom jornalista.
Quando um jornal aceita um volume grande de publicidade de um político em campanha, está se vendendo? E os leitores vão perceber isso? Andar nessa linha de limite, buscar o equilíbrio, é a grande dificuldade. Os jornais conseguiriam, algum dia, ser independentes diante do anunciante? No meu tempo de aprendizado, de foca, os dois jornais mais citados – um deles mantém a posição até hoje – eram o The New York Times e o Pravda. Este só publicava informações do regime comunista, era um jornal absolutamente não-isento, e o primeiro só dava notícias capitalistas. Mesmo assim, eram considerados os dois melhores jornais do mundo. Hoje, se essa análise for feita, vamos cair no mesmo buraco.
  • A perseguição da isenção é mais ou menos utópica.
Atualmente, convivemos com outro problema – acho que uma Gazeta Mercantil e uma Folha de S. Paulo, nem tanto –, que é o dos salários dos jornalistas. Aliás, quase todas as profissões padecem desse mesmo mal. A baixa remuneração provoca grande rotatividade de mão-de-obra, uma coisa altamente prejudicial até para a qualidade do jornal e que afeta também o leitor – podemos citar o caso do Jornal do Brasil, especificamente, que enfrenta dificuldades há alguns anos.

O profissional entra na redação e, quando se julga mais ou menos pronto para decolar, alguém lhe acena um contracheque muito maior, de uma outra área, e ele vai embora. Aquele cidadão que você desenvolveu com todo o carinho desiste repentinamente de uma atividade na qual poderia brilhar e para cuja melhoria tem muito a contribuir. Enfrentamos isso e até a concorrência dos ou-tros jornais que remuneram melhor e levam todos os profissionais. 

A reboque disso, há um outro fenômeno com que estamos nos defrontando agora. É a praga das assessorias. Quem está numa redação e já consegue escrever uma matéria com sujeito, verbo e objeto, lead e sublead arrumados para o leitor entender, é tido como um gênio na profissão. Se faz uma boa matéria, alguém já percebe que esse camarada também tem futuro para fazer lobby e o leva, pagando muito mais.

Isso gera um outro fenômeno na redação. Por ganhar pouco e normalmente estar sobrecarregado, o repórter fica um tanto preguiçoso. Geralmente pega duas ou três matérias diariamente e não tem tempo de depurar com o devido critério o que a assessoria traz pronto – dentro do ponto de vista dela e dos interesses que representa. Ele recebe o material e o emplaca. Isso é gravíssimo nas áreas de economia e entretenimento e menos prejudicial nas de política e de cidades, porque elas se alimentam de assuntos difíceis de controlar. Para mim, que estou numa redação, é uma praga, porque tem influência negativa na qualidade do meu jornal. Mas tenho de reconhecer que é um mercado de trabalho que está aí. Tomando o Rio de Janeiro como cenário, cerca de 30% dos jornalistas são ocupados por esse tipo de atividade e a gente perde excelentes valores nesse processo.

Não menosprezo esse trabalho, até porque um dia poderei estar desse lado. Mas diria que, para a qualidade final do jornal, tendo em vista seu papel cívico e a exigência do leitor, ele coloca-se a favor do patrão e da empresa. E, para esta, é muito mais barato pagar a um escritório de lobby que planta uma notícia nos jornais do que a uma agência de propaganda que produz um anúncio, bem mais caro do que uma nota inserida na coluna.

Imprecisão dos títulos, às vezes levianos ou em contradição

Isso também é decorrência dos problemas de formação do pessoal de redação. O verbo colocar é um defeito da nossa profissão. Estamos tentando abolir esse e vários outros verbos do Jornal do Brasil.
  • Por trás do verbo admitir você pode emplacar qualquer notícia, porque é possível induzir qualquer cidadão a admitir aquilo que você deseja que ele admita, numa entrevista coletiva ou individual
O verbo querer também é uma praga. A Folha de S. Paulo é responsável pelo lançamento de alguns desses vícios de que até hoje muita gente não conseguiu se livrar. Alguém aqui consegue me dizer o que quer dizer agilizar? Não existe em dicionário algum. E descartar? A Folha introduziu esse verbo no jornalismo brasileiro. A certa altura, todas as autoridades descartavam alguma coisa.

Com isso a imprensa, às vezes, tenta resolver seus problemas de espaço e diagramação – em certas ocasiões, é preciso resolver um título com determinado número de toques. Temos hoje um presidente da República com um nome imenso. Se escrever Fernando Henrique, metade da linha de manchete já estará ocupada. Por isso, virou FH e alguns jornais usam FHC. O Jornal do Brasil passou os oito ou nove primeiros meses do governo chamando o presidente de Cardoso. Ora, politicamente ele nunca foi conhecido assim, mas sempre como Fernando Henrique ou Fernando Henrique Cardoso.

Mas essa era uma regra que tínhamos no Jornal do Brasil desde os seus tempos áureos, um hábito que herdamos da ditadura militar, porque os presidentes não eram eleitos e nem conhecidos, mas precisávamos dar um nome a eles. Então, foi convencionado usar sempre o sobrenome: Castelo Branco, Geisel, Figueiredo. Felizmente, consertamos esse problema e Fernando Henrique passou a ser FH, o que facilita muito a feitura das manchetes.

Por que a demora na divulgação de escândalos?

Vou lembrar outro caso, de quando vivíamos a distensão – a passagem lenta, gradual e segura da ditadura para a democracia, no tempo do general Geisel. Naquela época, estava pipocando na imprensa o caso Delfim. Um tal de Levinson queria pagar a dívida com um imóvel que tinha, exigindo que o governo lhe desse, naquele ano, o valor que ele teria daí a um determinado tempo, no futuro. Um escândalo, que virou um dossiê. Abro um parêntese: essas denúncias dificilmente são apuradas. Elas chegam prontas ao jornal, e o que se faz é decantá-las e ver quais interesses estão em jogo.
  • Acho que, nos meus vinte e seis anos de jornalismo, a maioria das concessões do Prêmio Esso foi para matérias feitas em cima de dossiês que chegaram prontos nas redações dos jornais. 
O caso em questão rolou por várias redações, durante três meses, e ninguém teve coragem de publicar nada na época. Até que caiu na Folha de S. Paulo, que resolveu comprar a briga, e deu no que deu: o repórter ganhou o Prêmio Esso e o Levianos está morando em Nova Iorque, mais rico ainda.

Não conheço direito os bastidores do caso Hargreaves, como ele chegou à imprensa. Mas trago um outro grilo na cabeça:
  • todo repórter de Brasília é preguiçoso. Digo isso porque parece que em cada esquina dessa cidade existe uma maracutaia. E parece que não é só impressão
A meu ver, sai pouca coisa nos jornais, e o que é publicado é só a ponta do iceberg. Acho que, entrando em qualquer repartição pública em Brasília e começando a fuçar, você vai encontrar uma mutreta. Talvez esteja aí um problema que adquiri durante essa quilometragem, um defeito que meus filhos estão ajudando a corrigir: o ceticismo.

Você lida com tanta sujeira, irregularidade, agressão à ordem natural das coisas, que passa a não acreditar mais nas pessoas e nas instituições. Isso é muito ruim para quem está exercendo essa profissão, pois não se pode fazer a cultura de terra arrasada. Mas acaba acontecendo, porque o mesmo cidadão que você está entrevistando hoje e que promete corrigir o mundo é flagrado, logo depois, com a boca na botija, roubando milhões.

Voltando ao tema do título desse artigo, sou de parecer que a imprensa, cons-tituída de empresas privadas, com raríssimas exceções, tem o rabo preso com o governo ou outras organizações. Isso tem relação direta com a busca da isenção, que depende da independência econômica dos jornais. Você estar condicionado às páginas de anúncio é um negócio complicado, porque cria-se um paradoxo difícil de resolver

Controle de qualidade – também das colunas

Utilizamos um mecanismo que já existia antes. Aliás, quero dizer que tudo que hoje se vê no moderno jornalismo brasileiro passou pela cabeça de Alberto Dines. Ele foi o mentor e condutor da fase áurea do Jornal do Brasil, que, apesar de todas as dificuldades, tem hoje uma coluna chamada credibilidade, cons-truída pela estrutura montada por Dines. É um negócio meio mágico!

Então, não inventamos o controle de qualidade, mas apenas o readotamos. Há uma pessoa que, diariamente, chega às seis horas da manhã, pega o jornal e começa a lê-lo da primeira à última página. Às onze horas, deixa nos computadores um relatório do que achou da edição daquele dia. Infalivelmente, nos deparamos com uma relação de erros cometidos – de enfoque, de português, de titulação, de tudo, enfim. Então, isso tem ajudado muito no aperfeiçoamento do jornal. Todas as nossas colunas entram no crivo desse cidadão, Marcos de Castro, um redator dos velhos tempos e excelente profissional, também formado por Dines.

Como encarar a reforma do Estado e da sociedade?

Vivemos hoje uma situação complicada. A tendência da imprensa é ser sempre do contra. Temos um presidente da República que, até há pouco tempo, se identificava com todos os ideais da imprensa. Hoje está no poder. E como vamos fazer oposição a ele? Os cartunistas têm tido uma certa dificuldade. O nosso, Paulo Caruso, paulista, convivia no grupo íntimo de Fernando Henrique. Todos os dias conversamos com ele, para ver como vai fazer sua charge. Ele sempre diz: Eu não posso ser contra. Como vou fazer isso com um cidadão que, até bem pouco tempo, era meu "irmão"? É uma situação realmente delicada.

Os dedos da mão de Fernando Henrique foram utilizados como símbolo de campanha para identificar suas metas globais de governo, que representam mais ou menos os objetivos que a imprensa tem de defender, dentro do seu papel cívico. Ele está cumprindo aquilo que prometeu e se portando bem. No Caso Sivam, por exemplo, um episódio que tem duas vertentes. A Polícia Federal – como lembra Dines – critica os jornais, porque estariam desviando o assunto do foco central, que é o contrato do Sivam. Mas temos de explorar as duas vertentes. Uma, a lisura da licitação desse sistema de radares e a outra, a possibilidade e expansão do grampo telefônico, para não voltarmos aos tempos da ditadura militar, onde todo cidadão que pensava era policiado. 

Acho que a imprensa está se conduzindo bem nesse caso. E o presidente nos inclui entre os que chamou de corvos... 

Quando você muda de lado, a tendência é mudar completamente, mesmo a cabeça. A tendência é ele achar que, toda vez que a imprensa se mostrar crítica, estará sempre contra ele. Acho isso saudável. 

É bom que todo aquele que chega ao poder considere a imprensa como seu crítico principal. Senão ela estará deixando de cumprir o seu papel mais importante: zelar pelo bem estar comum.

Palestra proferida em 23.11.95.

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