A coisa Berlusconi: O rei está nu

A coisa Berlusconi


"Paralisada pelo berlusconismo, 
a Itália precisa reagir à promiscuidade de valores exalada por seu premiê" 
(Paolo Flores d’Arcais - filósofo)

Por Christian Carvalho Cruz

Numa cena do memorável O Crocodilo, filme que o cineasta Nanni Moretti rodou para explicar (talvez mais para entender) como seu país permitiu o surgimento de um Silvio Berlusconi,.

Um produtor estrangeiro diz ao colega italiano: 
  • "Vocês são um povo dividido entre o horror e o folclore. Estão acostumados com suas próprias nojeiras. Quando achamos que vocês, italianos, chegaram ao fundo do poço, vocês mostram que não. Continuam cavando... e afundam ainda mais". 
O Crocodilo é de 2006, e Berlusconi naquela época estava metido "só" em acusações de evasão de divisas, suborno de juízes e ligações com a máfia. Café pequeno perto do atual Rubygate, como ficou conhecida a fieira de escândalos sexuais envolvendo prostitutas menores de idade - a mais notória, uma marroquina de 17 anos alcunhada Ruby Rubacuori (Ruby Rouba-Corações) - que marca esse seu quarto mandato como chefe de governo.

É o mandato bunga-bunga, se quisermos tomar emprestado o nome do jogo erótico da preferência do premiê, conforme relato das moças que o visitaram em suas mansões cafonas em Milão e na Sicília.

Nessa semana, Berlusconi foi formalmente acusado e será julgado em abril por prostituição de menores e abuso de poder. Terá três juízas pela frente. Não que alguma forra esteja a caminho, afinal os italianos do bem desejam que a Justiça seja cega inclusive para Berlusconi. Mas, simbolicamente, não deixa de alimentar esperanças numa punição das boas.

O clima é de "não aguentamos mais tanta nojeira", e isso ficou claro nas manifestações de domingo, quando 1 milhão de italianos, liderados por mulheres e movimentos feministas, encheram 250 praças em todo o país para protestar contra o premiê. O grito de guerra oficial era "se não agora, quando?", mas também se faziam ouvir (e ler nas faixas) singelezas como "a Itália não é um bordel", "nós gostamos de sexo, não de bunga-bunga", "a dignidade da mulher é a dignidade da nação" ou, simplesmente, "velho porco!".

Apesar da determinação nas ruas, as massas não conseguiram responder à mais cruel das perguntas feitas por Moretti no Crocodilo: "Como é possível que alguém como Berlusconi tenha paralisado a Itália com seus problemas pessoais?"

Para tentar entender o berlusconismo, o Aliás conversou com o filósofo italiano Paolo Flores d’Arcais. Um dos líderes do Maio de 68 em seu país, até o ano passado professor da Universidade de Roma La Sapienza e hoje diretor da revista MicroMega, antigo bastião dos intelectuais da esquerda italiana, agora independente, d’Arcais é um antiberlusconista de primeira hora. Ao lado de Moretti, em 2002 liderou um movimento que reunia milhares nas praças em prol da legalidade, da ética e obviamente contra Berlusconi. "Por culpa dele, a Itália perdeu relevância política e econômica. Hoje, somos apenas alvo do ridículo", diz d’Arcais.

Fonte: O Estadão

Comentários: O Profeta Saramago já advertira:

"Este artigo, com este mesmo título, foi publicado ontem no jornal espanhol 'El País', que expressamente mo havia encomendado. Considerando que neste blogue fiz alguns comentários sobre as façanhas do primeiro-ministro italiano, estranho seria não recolher aqui este texto. 

Outros haverá no futuro, seguramente, uma vez que Berlusconi não renunciará ao que é e ao que faz. Eu também não.

A Coisa Berlusconi

Não vejo que outro nome lhe poderia dar. Uma coisa perigosamente parecida a um ser humano, uma coisa que dá festas, organiza orgias e manda num país chamado Itália. 

Esta coisa, esta doença, este vírus ameaça ser a causa da morte moral do país de Verdi se um vómito profundo não conseguir arrancá-la da consciência dos italianos antes que o veneno acabe por corroer-lhes as veias e destroçar o coração de uma das mais ricas culturas europeias. 

Os valores básicos da convivência humana são espezinhados todos os dias pelas patas viscosas da coisa Berlusconi que, entre os seus múltiplos talentos, tem uma habilidade funambulesca para abusar das palavras, pervertendo-lhes a intenção e o sentido, como é o caso do Pólo da Liberdade, que assim se chama o partido com que assaltou o poder. 

Chamei delinquente a esta coisa e não me arrependo. Por razões de natureza semântica e social que outros poderão explicar melhor que eu, o termo delinquente tem em Itália uma carga negativa muito mais forte que em qualquer outro idioma falado na Europa. 

Foi para traduzir de forma clara e contundente o que penso da coisa Berlusconi que utilizei o termo na acepção que a língua de Dante lhe vem dando habitualmente, embora seja mais do que duvidoso que Dante o tenha utilizado alguma vez. Delinquência, no meu português, significa, de acordo com os dicionários e a prática corrente da comunicação, “acto de cometer delitos, desobedecer a leis ou a padrões morais”. 

A definição assenta na coisa Berlusconi sem uma prega, sem uma ruga, a ponto de se parecer mais a uma segunda pele que à roupa que se põe em cima. Desde há anos que a coisa Berlusconi tem vindo a cometer delitos de variável mas sempre demonstrada gravidade. 

Além disso, não só tem desobedecido a leis como, pior ainda, as tem mandado fabricar para salvaguarda dos seus interesses públicos e particulares, de político, empresário e acompanhante de menores, e quanto aos padrões morais, nem vale a pena falar, não há quem não saiba em Itália e no mundo que a coisa Berlusconi há muito tempo que caiu na mais completa abjecção. 

Este é o primeiro-ministro italiano, esta é a coisa que o povo italiano por duas vezes elegeu para que lhe servisse de modelo, este é o caminho da ruína para onde estão a ser levados por arrastamento os valores que liberdade e dignidade impregnaram a música de Verdi e a acção política de Garibaldi, esses que fizeram da Itália do século XIX, durante a luta pela unificação, um guia espiritual da Europa e dos europeus. 

É isso que a coisa Berlusconi quer lançar para o caixote do lixo da História. 

Vão os italianos permiti-lo?"

Por José Saramago 

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