Terceirização e Precarização Social: uma questão política e multidimensional

Na verdade, a precarização é um processo de dominação que mescla insegurança, incerteza, sujeição, competição, proliferação da desconfiança e do individualismo,
sequestro do tempo e da subjetividade.

Tânia Franco¹
Graça Druck²
Edith Seligmann-Silva³


Desde a crise da sociedade fordista nos anos 1970 e das supostas “saídas” preconizadas pelas políticas neoliberais, a questão social vem assumindo importância central dada a expansão do desemprego, a reemergência da pobreza nos países centrais e a fragilização do trabalho, dentre outros. 

Desde então, as abordagens sobre a precarização socioeconômica evoluíram nas ciências sociais, particularmente na França, transitando da noção de exclusão – usada inicialmente para situações extremas, como o desemprego – para abranger, contemporaneamente, as diversas situações de precarização dos incluídos, imersos na insegurança e na incerteza permanentes das políticas de gestão flexível (HIRATA; PRETÉCEILLE, 2002).

A flexibilização das relações de trabalho diluiu a nítida linha de separação entre incluídos e excluídos. Através da terceirização e da desregulamentação social, produziu-se a desestabilização do mundo do trabalho que atingiu, inicialmente, os trabalhadores industriais e depois todos os assalariados, afetando, hoje, todos os que vivem do trabalho. 

Este processo histórico levou à redução do emprego “fordista” (ou seja, do trabalho com um corolário de direitos e proteção social, característico da Era de Ouro ou welfare state), com uma crescente fragilização dos trabalhadores estáveis e uma persistente produção de instáveis (HARVEY, 1992), configurando a vulnerabilidade de massa (CASTEL, 1998). O apagamento dos contornos nítidos entre incluídos e excluídos é, portanto, como bem afirmam Hirata e Pretéceille (2002, p. 48):
  • [...] processo cujas raízes se encontravam na fragilização da posição de grupos ou de pessoas que dispunham de um emprego e de condições de vida até aquele momento consideradas satisfatórias. Daí originaram-se as análises centradas na precariedade, precarização social e precarização do trabalho.
Castel (1998) constitui um marco na superação da visão dicotômica entre incluídos e excluídos nas abordagens sobre a precarização social. A precarização do emprego e o desemprego – na crise da sociedade salarial fordista – são estratégicos nos processos de reestruturação produtiva, em que a flexibilização/precarização é um elemento central das políticas neoliberais de dominação social, conforme Thébaud-Mony e Druck (2007).

Na verdade, a precarização é um processo multidimensional que altera a vida dentro e fora do trabalho (6). Nas empresas se expressa em formas de organização pautadas:
  • no just in time, 
  • na gestão pelo medo, 
  • nas práticas participativas forçadas, 
  • na imposição sutil de autoaceleração, 
  • na multifuncionalidade, 
  • dentre outros métodos voltados ao controle maximizado. 
São processos de dominação que mesclam insegurança, incerteza, sujeição, competição, proliferação da desconfiança e do individualismo, sequestro do tempo e da subjetividade. São afetadasas demais dimensões da vida social, laços familiares e intergeracionais. A desestabilização e a vulnerabilidade sociais conduzem à desvalorização simbólica, com a corrosão do sistema de valores, da autoimagem e das representações da inserção de cada um na estrutura social.

A desestabilização no mundo do trabalho, desde a década de 1980, deu-se com demissões em massa, que reduziram drasticamente os segmentos mais estáveis de trabalhadores, ao lado da expansão de uma multiplicidade de estatutos de assalariamento – explícitos ou não – nas grandes empresas, compondo uma rede de trabalho precário. Muitos demitidos foram reintegrados sob variadas formas de terceirização e outros tipos de precarização dos vínculos contratuais, a exemplo dos contratos temporários, dos contratos em tempo parcial – configurando situações de trabalho frágeis em relação ao seu estatuto anterior. Outros permaneceram no desemprego de longa duração. 

Assim, as abordagens foram ampliadas, passando a englobar tanto os trabalhadores do núcleo estável, quanto a cascata de terceirizados, compondo uma rede de novas relações de trabalho marcadas pela crescente precarização. Para fins analíticos, pode-se distinguir algumas dimensões deste processo.

A primeira
delas diz respeito aos vínculos de trabalho e às relações contratuais. Compreende o processo sociopolítico de perdas de direitos trabalhistas ou do seu usufruto no mundo do trabalho real – descanso remunerado, férias anuais remuneradas, referenciais de jornada de trabalho normal e de horas extras, dentre outros. Envolve, ainda, as perdas de benefícios indiretos – planos de saúde, transporte, alimentação, auxílio educação, dentre outros –, bem como as perdas salariais, em geral, pela não adoção/cumprimento ou defasagem em relação aos acordos coletivos da categoria de trabalhadores mais “estáveis”.

Trata-se de uma dimensão do processo de precarização que leva à desestabilização dos estáveis, à perda dos referenciais de proteção social do trabalho, conduzindo “estáveis” e instáveis a metabolizarem, cotidianamente, a competição desenfreada, a insegurança e a instabilidade, terrenos em que prolifera e se move a gestão pelo medo. 
  • Druck e Franco (2007) constataram que grandes empresas industriais chegam a ter 75% de seus trabalhadores regulares sob contratos instáveis (terceirizados) e apenas 25% “estáveis”. 
A generalização deste processo resulta num nivelamento “por baixo” do mercado de trabalho, configurando a precarização do emprego (e do mercado de trabalho).

A segunda dimensão concerne à organização e às condições de trabalho que, em todos os setores de atividades, têm se caracterizado pelas metas inalcançáveis e pelo ritmo intenso de trabalho favorecidos pelo patamar tecnológico da microeletrônica. 

A forte pressão de tempo somada à intensificação do controle ou da instrumentalização do medo à demissão conduzem à intensificação do trabalho. O aumento da competitividade também contribui para esta intensificação, além de, como veremos adiante, acarretar ressonâncias negativas para a sociabilidade e para a saúde mental. A constatação de que a hiperatividade está associada ao desenvolvimento de fenômenos como a compulsividade e a autoaceleração vem revelando processos complexos que têm sido estudados sob várias perspectivas (MARZANO, 2004; DEJOURS, 2004). 

Acrescente-se a exiguidade dos tempos destinados a pausas no trabalho, repouso, recuperação do cansaço e espaço estreitado do tempo de viver e conviver fora do ambiente de trabalho. A escolha organizacional da polivalência trouxe impactos problemáticos para a identidade dos assalariados que antes experimentavam orgulho profissional por suas especialidades (SELIGMANN--SILVA, 2001). 

Ao mesmo tempo, a rotatividade no trabalho – entre diversas empresas, com tipos diferentes de contratos – transtornou projetos de desenvolvimento profissional e pessoal de trabalhadores, especialmente dos mais jovens (SENNETT, 1999, 2006). Estas e outras características da organização do trabalho potencializam a multiexposição aos agentes físicos, biológicos, químicos, ergonômicos e organizacionais, favorecendo sofrimento e processos de adoecimento.

A terceira dimensão, estreitamente ligada às anteriores, consiste na precarização da saúde dos trabalhadores. Esta vem incidindo de modo marcante na saúde mental, que é indissociável da saúde como um todo. Trata-se da fragilização – orgânica, existencial e identitária – dos indivíduos pela organização do trabalho com intensificação da multiexposição. 
  • Essa fragilização é acrescida das limitações impostas, em muitas empresas, ao bom funcionamento dos SESMTs (Serviços de Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho) no Brasil em nome de uma equivocada contenção de custos. 
Essas limitações se expressam, por exemplo, nas defasagens de treinamento e de informação sobre os riscos entre segmentos “estáveis” e terceirizados, na diluição das responsabilidades em relação a acidentes, adoecimentos e falhas na prevenção, além do predomínio das medidas de proteção individual em detrimento da proteção coletiva e das políticas preventivas. Por outro lado, observa-se que a perda de estatuto da maioria dos trabalhadores dentro das empresas – que são os terceirizados, com contratos temporários etc. – conduz a uma maior sujeição às condições aviltantes e (in)suportáveis de trabalho.

Diante das metas e dos ritmos acelerados, frequentemente são utilizados “atalhos” e manobras para aumentar a produtividade e manter-se no mercado que fragilizam a segurança e a saúde no trabalho (SILVA; FRANCO, 2007; FRANCO, 1997). 
  • Tais aspectos evidenciam os equívocos do economicismo ao menosprezar o que, em verdade, seriam investimentos em saúde e segurança e não “gastos dispensáveis”. Essa postura revela uma negação do valor da proteção à saúde e à vida.
É necessário considerar, ainda, que os tempos sociais do trabalho (ritmos, intensidade, regimes de turnos, hora extra, banco de horas...) encontram-se em contradição com os biorritmos dos indivíduos, gerando acidentes e adoecimentos, destacando-se, internacionalmente, o crescimento de dois grupos de patologias: o das LER/DORT e o dos transtornos mentais. 

Entre estes, cabe ressaltar:
  • os transtornos do ciclo vigília-sono – comuns em trabalhadores em regimes de turnos alternados e de trabalho noturno – que fazem parte da lista de transtornos mentais relacionados ao trabalho de acordo com a Portaria nº 1.339/1999 do Ministério da Saúde e, muitas vezes, aparecem associados (em comorbidade) ao quadro de fadiga patológica, também abrangido pela lista oficial; 
  • e o Esgotamento Profissional (Síndrome de Burnout), identificado no histórico de muitos casos de quadros depressivos e de processos psicossociais que conduzem aos suicídios e à escalada da dependência do álcool e das drogas(7).

Ademais, constatações epidemiológicas e clínicas apontam os riscos de hipertensão arterial e doença coronariana configurados pela pressão temporal em profissionais submetidos de forma continuada ao work-stress, entre outras patologias que atingem o organismo pela via psicossomática, nas quais o estresse continuado desempenha papel relevante (HALLQVIST et al., 1998). Vários destes agravos são, portanto, expressão da incompatibilidade entre os tempos sociais do trabalho/vida e a capacidade adaptativa da fisiologia e dos biorritmos humanos. São emblemáticos de modos de viver e de trabalhar socialmente patogênicos.(8)

A quarta dimensão da precarização, fundamental para a consistência do tecido social, compreende a fragilização do reconhecimento social, da valorização simbólica e do processo de construção das identidades individual e coletiva. Numa sociedade em que o trabalho ainda ocupa um espaço/tempo central na vida social e individual, sua precarização dificulta o processo de identificação e construção de si, tornando mais complexa a alienação/estranhamento do trabalho, conforme Antunes (2002).

Consolida-se no imaginário social:
  • a noção de descartabilidade das pessoas, 
  • de naturalidade da insegurança e da competição de todos contra todos, ancorada na fragilização dos vínculos, 
  • nas rupturas de trajetórias profissionais, 
  • na perda da perspectiva de carreira. 
  • Corrosão do caráter, nos termos de Sennett (1999), 
  • banalização da injustiça social na perspectiva de Dejours (1999), 
  • naturaliza-se toda sorte de exploração, inclusive infantil. 
Aprofunda-se o processo de coisificação das relações humanas e de humanização das coisas, destrata-se a vida. Fragilizando-se o reconhecimento social e a valorização simbólica, mina-se a autoestima, sendo atingidas, conforme Seligmann-Silva (1997, 2001) e Nardi (2006), as identidades individual e coletiva, bem como a dimensão ética e a dignidade – o cerne do ser humano.

A quinta dimensão afeta a natureza da representação e organização coletiva (sindical). O binômio terceirização/precarização, ao minar a identidade individual e coletiva, conduz à fragilização dos agentes sociais.

São os efeitos propriamente políticos da terceirização que pulveriza e enfraquece os sindicatos, ameaçando sua representatividade pela divisão crescente das categorias profissionais, cada uma com o seu sindicato, com atuações competitivas entre si. 

Esta fragilização política conduz tanto à discriminação dos terceirizados pela empresa contratante – com espaços demarcados e áreas proibidas – quanto à discriminação entre os próprios trabalhadores – do núcleo “estável” e terceirizados. Ademais, ao minimizar as possibilidades de enfrentamento das condições degradantes, a precarização da organização coletiva aumenta tanto a vulnerabilidade social quanto a individual (9).

A insegurança e a desproteção, vivenciados por todos e por cada trabalhador/a, produzem reações e desdobramentos de diferentes tipos – inclusive transtornos psíquicos (10). Vale lembrar que a precarização política, em outra perspectiva, é exposta por Castel (2009) ao analisar a fragilização da cidadania no processo de desmonte de estruturas governamentais e legislações que até os anos 1970 garantiam direitos sociais e políticas de proteção social. 

Esta precarização concorre para a desproteção que pode tornar-se desamparo, vivenciado na intermitência entre trabalho desregulamentado e desemprego, pelos mais pobres e desprovidos de capital social, especialmente em países nos quais esta falta corresponde, em grande parte, a carências de ordem educacional.

(9) Novos estudos sobre trajetórias de vida e trabalho, desenvolvidos na área de sociologia do trabalho, oferecem embasamento e convergência para o entendimento destes processos de adoecimento mental na atualidade, mobilizados por situações de carência de todo tipo vivenciadas na sequência da perda de empregos estáveis e na intermitência entre emprego precário e desemprego. Ver Hirata e Humphrey (1989); Benoit-Guilbot e Gallie (1992); Elkeles e Seifert (1992); Guimarães (2004); Doray (2006).
(10) As privatizações efetivadas no Brasil, a partir do governo Collor e ao longo dos anos 1990, lançaram muitos antigos funcionários ao trabalho instável, mergulhando-os na precarização. Muitos jamais conseguiram retomar os ofícios para os quais haviam adquirido capacitação e experiência, o que, em numerosos casos, constituiu ponto de partida para o desenvolvimento de quadros depressivos e outros transtornos mentais. Tais processos de desgaste mental se desenvolveram, em alguns casos, ao longo de um desemprego prolongado que era vivenciado como experiência penosa e geradora de profundo desânimo. O constatado nestes antigos funcionários públicos revela alguns impactos específicos decorrentes do desmoronamento de antigas certezas vinculadas à ideia de estabilidade no serviço público. Mas evidencia também aspectos e etapas no adoecimento que apresentam similaridade com os observados em outros trabalhadores atingidos por desemprego prolongado, desde a pesquisa pioneira desenvolvida na Europa durante a depressão de 1929 e nos anos 1930 (JAHODA; LAZARSFELD; ZIESEL, 1975), reencontrados, mais recentemente, em outros países, inclusive no Brasil dos anos 1980 e 1990. Pois a depressão que se instalou em muitos deles se associou também à vivência de uma perda definitiva das perspectivas profissionais e existenciais, conforme Seligmann-Silva (1997, 2001).


¹ Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (CRH/FFCH/UFBA), Salvador, BA.

² Professora Adjunta do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA); Pesquisadora do CRH/FFCH/UFBA, Pesquisadora do CNPq. Especialista na área de Sociologia do Trabalho, Salvador, BA.


³ Médica psiquiatra com especialização em Saúde Pública. Docente aposentada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.

Fonte: Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 35 (122): 230-233, 2010

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