Flexibilização do Trabalho: Como se produz a precarização social

Ensaios de Saúde Pública
A terceirização é uma das principais formas da flexibilização do trabalho mediante a transferência da atividade de um “primeiro” – que deveria se responsabilizar pela relação empregatícia – para um “terceiro”, liberando, assim, o grande capital dos encargos e direitos trabalhistas.

Tânia Franco¹
Graça Druck²
Edith Seligmann-Silva³



Suposta saída para a crise do fordismo nos anos 1970, a flexibilização do trabalho foi adotada como um dos elementos centrais da reestruturação produtiva e das políticas neoliberais de alinhamento das sociedades urbano-industriais capitalistas ao processo de globalização. 

Num campo de forças sociais desfavorável ao trabalho pela hegemonia neoliberal, a globalização consolidou o binômio flexibilização/precarização e a perda da razão social do trabalho, com a reafirmação do lucro e da competitividade como estruturadores do mundo do trabalho a despeito do discurso e de programas de responsabilidade social.
  • A terceirização é uma das principais formas da flexibilização do trabalho mediante a transferência da atividade de um “primeiro” – que deveria se responsabilizar pela relação empregatícia – para um “terceiro”, liberando, assim, o grande capital dos encargos e direitos trabalhistas. 
Na perspectiva da sociologia do trabalho, trata-se de uma forma iniludível de dominação e uma prática de gestão que anula a regulação do mercado de trabalho.
  • A terceirização lança um manto de invisibilidade sobre o trabalho real – ocultando a relação capital/trabalho e descaracterizando o vínculo empregado/empregador que pauta o direito trabalhista – mediante a transferência de responsabilidades de gestão e de custos para um “terceiro”.
Na esteira de sua generalização no Brasil, ocorreram sucessivas mudanças na legislação (KREIN,2003), liberando a empresa das contrapartidas sociais referentes aos direitos trabalhistas. Por outro lado, o enfraquecimento dos sindicatos tem levado a um processo de judicialização das questões sociais (do trabalho), conferindo uma importância suprema à instância jurídica, em particular ao Ministério Público do Trabalho e aos Tribunais Regionais do Trabalho.

Vários tipos de terceirização têm sido detectados desde os anos 1980, abrangendo velhas e novas modalidades: 
  1. o trabalho a domicílio – seja a forma tradicional, com a subcontratação de trabalhadores autônomos, em geral sem contrato formal, prática recorrente nos setores tradicionais da indústria, seja a forma de teletrabalho no domicílio, a exemplo de microempresas de informática com funcionários trabalhando em suas casas, ou indústria de aparelhos eletrônicos, ou áreas de venda e assistência técnica de várias empresas (LAVINAS et al., 1998); 
  2. as redes de empresas fornecedoras de componentes e peças (típica da indústria automobilística); a subcontratação de serviços de apoio e periféricos; 
  3. a subcontratação de empresas ou trabalhadores autônomos em áreas produtivas e nucleares (manutenção); 
  4. a quarteirização, empresas contratadas para gerir contratos com as terceiras, caracterizando a cascata de subcontratação.
Nos últimos 15 anos, a terceirização cresceu em todos os setores no Brasil, especialmente no setor público e nas empresas estatais, nas seguintes formas:
  • estágios (em empresas e bancos estatais), 
  • cooperativas (destacadamente na área de saúde),
  • e externalização de serviços públicos (da administração direta) para empresas privadas. 
No setor privado, além das cooperativas, destacam-se o novo trabalho a domicílio (teletrabalho) e as “empresas-filhotes” ou “PJs” (empresas do eu sozinho), que descaracterizam completamente as relações trabalhistas. 
  • As cooperativas, em sua maior parte fraudulentas, além de desconfigurarem as imagens do empregado/empregador que representam as relações capital/trabalho, abrigam ex-empregados demitidos das empresas contratantes (11). 
  • Essa nova terceirização – ao deixar de ser uma prática marginal e periférica – conduz a uma profunda metamorfose social, tornando-se estratégia central na gestão das empresas e principal via de flexibilização dos contratos e de controle sobre os trabalhadores.
No processo de flexibilização e precarização, o Estado tem tido papel fundamental através de mudanças permissivas no terreno trabalhista (legalização da terceirização, perda de direitos do trabalho) e liberaçãodos encargos sociais (KREIN, 2007; CARDOSO, 2003). Configura-se, conforme Appay e Thébaud-Mony (1997), a dupla institucionalização da instabilidade através da precarização econômica e da precarização da proteção social.

Afetando a sociedade como um todo, a precarização do trabalho não se restringe apenas à dimensão econômica. De forma multidimensional, deteriora todo o tecido social, conduzindo a um processo de desfiliação e de despertencimento social, causa direta de vulnerabilidade social e da desfiliação. Para Castel(1998, p. 409): 
  • “a precarização do trabalho é um processo central, comandado pelas novas exigências tecnológico-econômicas da evolução do capitalismo moderno”. 
No âmbito de uma sociedade salarial – a despeito da destruição do emprego – o trabalho ainda se mantém como referência para a construção das identidades sociais e passaporte para educação, cultura, lazer, saúde etc.  Delineia-se, portanto, uma era de precarização global que consolida a perda da razão social do trabalho, com sérios impactos no imaginário social, gerando violência e adoecimentos, caracterizando uma condição de vulnerabilidade e desfiliação social.
    • Aprofunda-se a alienação social do trabalho, cristalizando-se o processo de coisificação das relações humanas e de personificação das coisas. 
    São minados os processos de construção das identidades, valorizando valorizando-se o individualismo exacerbado, consumista e desintegrador – nutrindo-se a ilusão de ser feliz pelo ter – e impulsionando-se os indivíduos num voltar-se para a exterioridade que conduz a um processo de esvaziamento interior e de negação dos sentimentos e valores humanos, perdendo-se a noção de pertencimento à própria espécie humana.

    (11) Conforme Carelli (2002, 2003); Lima e Soares (2002); Lima (2004, 2007); Piccinini (2004); Gimenez et al. (2003); Druck e Franco (2007). Ver também Araújo (2001); Araújo e Porto (2004).


    ¹ Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (CRH/FFCH/UFBA), Salvador, BA.

    ² Professora Adjunta do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA); Pesquisadora do CRH/FFCH/UFBA, Pesquisadora do CNPq. Especialista na área de Sociologia do Trabalho, Salvador, BA.

    ³ Médica psiquiatra com especialização em Saúde Pública. Docente aposentada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.


    Fonte: Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 35 (122): 233-234, 2010

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