Finados: Uma visita ao túmulo da Ética
Psilacaníase
Hoje, dia de Finados, certamente, milhões de pessoas vão ao encontro de seus antepassados enterrados em solo profundo. Levam-lhos, em morte, o que, em vida, foram incapazes de dar: tempo, atenção, flores.
Uns dizem se tratar de um "reecontro", não se sabe se com o além ou consigo mesmos. Outros dizem se tratar de convenções sociais necessárias para a perpetuação de um tal "sentido da vida": um modo deveras sui generis de expiar suas culpas.
Alguns ainda, o vão na vã tentativa de preencher a lacuna daqueles que, desta para melhor passaram, lhes fazem. Não há que se condenar nenhum deles, pelo contrário: há de se compreendê-los.
Entretanto, não será da culpa, mas sim da falta que se ora pressupõe. Crê-se que, nos tempos atuais, urge visitar a Ética em seu túmulo com os mesmos (e precisos) sentimentos retro citados. Para tanto, não há porquê utilizar de instrumentais pedagógicos para definir o que é Ética, melhor será permitir que cada um e qual a conceitue como melhor lhe convenha.
Falar em Ética, entre outras, é, à luz de Lacan, primeiro reconhecer que será sempre um assunto inacabado. E inobstante, até e sobretudo por isso, passível de avanços. O que se reúne sob esse termo ética (em psicanálise, minúsculo) permite, mais do que qualquer outro domínio, colocar à prova as categorias através das quais, aquilo que Jacques Lacan generosamente ensinou - não entre quatro paredes, ou a portas fechadas em grandes e prestigiosos centros acadêmicos, mas em seminários públicos e abertos a quem quisesse ouvir, ver e aprender.
Lacan - mestre, teórico e revolucionário (não necessariamente nesta ordem) - acreditava, profundamente, dar a seus aprendizes o instrumento mais apropriado para salientar o que a obra de Freud ("foi seu mestre que lhe ensinou/foi meu mestre que me ensinou"), e a experiência da psicanálise que dela decorre, trazem, acreditem, de novo: doravante subvertida em Psilacaníase - ouso subverter, se lhe nos permitirem.
De novo sobre o quê?
Lacan diz: "Sobre alguma coisa que é, ao mesmo tempo, muito geral e muito particular. Muito geral na medida em que a experiência da psicanálise é altamente significativa de um certo momento do homem que é aquele em que vivemos, sem poder sempre, e até pelo contrário, discernir o que significa a obra, a obra coletiva, na qual estamos todos mergulhados.
E, por outro lado, muito particular, como é nosso trabalho de todos os dias, ou seja, a maneira pela qual temos de responder na experiência ao que lhes ensinei a articular como uma demanda, demanda do doente à qual nossa resposta confere uma significação exata - uma resposta da qual devemos conservar a mais severa disciplina para não deixar adulterar o sentido, em suma profundamente inconsciente, dessa demanda."
Falando de ética (da psicanálise), em seu Le Séminaire - Livre VII: L'éthique de la pshychanalyse (O Seminário - Livro VII: a ética da psicanálise), Lacan, inescapável, também escolhe uma palavra que não parece por acaso: Moral, poderia ainda ter dito. E se diz ética, verão por quê, não é pelo prazer de utilizar um termo mais raro.
Notem isto que torna, em suma, esse assunto eminentemente acessível, e até mesmo tentador - não há ninguém na psicanálise, crê Lacan, que não tenha sido tentado a tratar o assunto de uma ética, e não foi ele, certamente, reconhece de pronto, quem criou a cunha. É igualmente impossível desconhecer que estamos mergulhados nos problemas morais propriamente ditos.
Nossa experiência convida-nos a aprofundar, mais do que jamais fora feito antes de nós, o universo da falta. E o termo que emprega, com um adjetivo a mais, nosso colega Hesnard - o Universo mórbido, diz ele, da falta. E, efetivamente, é, sem dúvida, sob este aspecto mórbido que Lacan aborda no mais alto grau.
Em verdade, impossível seria dissociar esse aspecto do universo da falta como tal, e o elo da falta com a morbidez não deixa de marcar com seu selo toda a reflexão moral em nossa (e noutras) época, também. É até mesmo algumas vezes singular - ocorre-lhe (Lacan) indicar-nos aqui à margem de sua exposição - ver aqueles que, nos meios religiosos, tratam de reflexão moral serem acometidos de não sei que vertigem diante da nossa experiência. Mais: chega a ser espantoso vê-los, às vezes, como que
- "cedendo à tentação de um otimismo. que parece excessivo (até mesmo cômico), e pensando que uma redução da morbidez poderia conduzir a uma espécie de volatização da falta".
Com efeito, aquilo com que lidamos é nada menos do que a atração da falta. Mas, o que é essa falta?
Seguramente, assevera Lacan, não é a mesma que aquela que o doente comete com o fim de ser punido ou de se punir. Quando falamos da necessidade de punição, trata-se justamente de uma falta que designamos, que se encontra no caminho dessa necessidade, e que é procurada para obter essa punição.
Seria, então, a falta que a obra freudiana designa em seu início, o assassinato do pai - esse grande mito colocado por Freud na origem do desenvolvimento da cultura?
- "Ou será a falta mais obscura e ainda mais original, cujo termo ele chega a colocar no final de sua obra: o instinto de morte (pulsão de vida), dado que o homem está ancorado, no que tem de mais profundo em si mesmo, em sua temível dialética?"
É, precisamente, entre esses dois termos que Lacan se estende, em Freud, uma reflexão, um progresso do qual teremos de medir as incidências exatas. Mas, em verdade, isso não constitui, nem no âmbito prático, tampouco no âmbito teórico, a totalidade do que nos faz salientar a importância da "dimensão ética" em nossa experiência (de vida) e nos ensinamentos de Freud. Com efeito, como se fez notar com justa razão:
- "Nem tudo na ética está unicamente vinculado ao sentimento de obrigação."
A experiência moral como tal, ou seja, a referência à sanção, coloca o homem numa certa relação com sua própria ação que não é simplesmente a de uma lei articulada, mas sim de uma direção, de uma tendência e, em suma, de um bem que ele clama, engendrando um ideal da conduta.
Tudo isso constitui, propriamente falando, a dimensão ética e situa-se para além do mandamento, isto é, para além do que pode apresentar-se com um sentimento de obrigação. É assim que Lacan crê ser necessário situar a dimensão de nossa experiência em relação à reflexão (pretensamente) moralista - faz-se aqui alusão a Frédéric Rauh, que deveremos levar em conta como um dos pontos de referência deste exercício.
Ironias à parte, certamente, não seremos nós que, de bom grado, colocaremos em segundo plano o sentimento de obrigação. Se efetivamente há alguma coisa que a análise apontou é justamente, para além do sentimento de obrigação propriamente dito, a importância, a onipresença, diríamos, do sentimento de culpa.
Esse fácies - para o chamarmos por seu nome - desagradável da experiência moral, certas tendências internas da reflexão ética tentam eludi-lo. Se, decerto, não fazemos parte daqueles que tentam amortecê-lo, embotá-lo, atenuá-lo, é porque estamos insistentemente referenciados, referidos por nossa experiência cotidiana.
Uma certa filosofia - que precedeu imediatamente àquela que é a parente mais próxima do resultado freudiano, aquela que nos foi transmitida no séc XIX -, uma certa filosofia teve por meta, ainda no séc XVIII, o que se poderia chamar de ultrapassamento naturalista do desejo (nas palavras de Lacan).
Pode-se caracterizar essa reflexão, toda essa prática, como aquela do homem do prazer. Ora, o ultrapassamento naturalista do desejo fracassou. Quanto mais a teoria, a obra da crítica social, o crivo de uma experiência tendendo a reduzir a obrigação a funções precisas na ordem social deram-nos a esperança de relativizar o caráter imperativo, contrariador, e, em suma, conflituoso da experiência moral, mais vimos aumentar nos fatos (e diria também nos atos) as incidências propriamente patológicas dessa experiência.
- Não estamos diante de um homem menos carregado de leis e de deveres do que antes da grande experiência crítica do pensamento dito libertino.
Somos levados a abordar, ainda que por retrospeção, a experiência desse homem do prazer, veremos logo - e por meio de um exame do que a análise forneceu ao conhecimento e à situação da experiência perversa - que, na verdade, tudo nessa teoria moral devia destiná-la a esse fracasso.
Com efeito, continua Lacan, basta ler os autores mais importantes - quero dizer aqueles que, para se expressarem sobre isso, tomaram os caminhos mais acentuados no sentido da libertinagem, e até mesmo do erotismo - para se perceber que ela comporta uma denotação de desafio, uma espécie de ordália proposta ao termo que permanece certamente reduzido, mas sem dúvida fixo, dessa articulação - e que não é outro senão o termo de divino.
Deus, como autor da natureza, é intimado a dar conta das mais extremas anomalias, exigência esta que nos é proposta pelo Marquês de Sade, Mirabeau, Diderot, este último chegou a decretar:
- "O homem só será livre quando o último déspota for estrangulado com as entranhas do último padre"
Esse desafio, essa intimação, essa ordália não devia permitir outra saída senão aquela que se encontrou efetivamente realizada na história.
Deve-se dizer, sem medo de errar - ainda que errado - que:
- "aquele que se submete à ordália reencontra no final suas premissas; ou seja, o Outro diante do qual essa ordália se apresenta, o Juiz, no fim das contas, da dita cuja.
Talvez seja justamente isso o que confere o tom próprio dessa literatura, que nos apresenta a dimensão da erótica de uma maneira jamais reencontrada, inigualável.
Seguramente deveremos, no decurso de nossa investigação, que prossegue, propor ao nosso próprio julgamento o que a análise conserva de afinidade, de parentesco, de raiz em uma tal experiência.
Custou caro à Nietzsche - monstro do saber - ter decretado "Deus está morto", quando se lê o seu epitáfio:
- "Nietzsche está morto" (Deus)
Ao contrário, nada custa-nos reconhecer: a Ética está morta. E ninguém lerá o epitáfio:
- "A Psilacaníase está morta" (Ética)
Tato De Macedo
Comentários
A História não é apenas um registro de datas e heróis, tal como a estudamos em livros técnicos; ela também exige que homens e grupos assumam riscos de exporem suas próprias idéias e sentimentos acerca do que se passa ao seu redor. Assim foi com Sócrates, Galileu, Freud e outros tantos. Dentro de cada um de nós existe um pouco de cada um desses gênios, e só escrevendo, publicando e divulgando livros a história pode ser escrita ao mesmo tempo que vivida: fenômeno típico da popularização dos recursos gráficos e da democratização da poesia oral.
Ao amadurecer, enquanto cultura e civilização, o homem também criou uma história individual, cada vez mais evidente quando olhamos para os grupos sociais e chegamos mesmo a reconhecer nomes e pessoas que se sobressaem às outras. Como fenômeno político, isto é normalmente aceito e,sem tocarmos no fenômenoestético.
Você Tato a meu ver é bastante inteligente. Na vida as coisas nem sempre são como queremos; - e tudo o que possuímos devemos agradecer, agradecer. Dizer a verdade é gratificante... mas, nem sempre é oportuno;- depende a quem vc quer alertar. Muitas vezes devemos seguir, mostrando com pasciência, assim não nos machucamos tanto.E lhe digo: tudo nesta vida é passageiro e sua cultura é sua... sua conquista... aproveite-a enriquecendo-se cada dia mais. Seja Feliz.
Abraços,
Marilda Oliveira
Leste com lupa o post. Mas devo refutar essa acusação de "inteligente".
Definitivamente é o único "defeito" que não enxergo em mim, sinceridade...rss
Aliás, certa vez, perguntaram a Feud quem ele era? Ao que, modestamente, respondeu:
"Se partirmos do pressuposto que só o conhecimento traz o poder (entendido aqui "poder fazer"), devo dizer que sou apenas um conquistador".
Eu, pessoalmente, faço o que posso, com o conhecimento que conquisto na labuta diária.
Da vida: como diz uma querida amiga da terra do sol nascente: "Ora, a vida é uma viagem na qual estamos aqui apenas de passagem. Curtamos a paisagem". (gosto dessa definição)..rss
Tenha um ótimo fim de "finados" e uma ótima semana.
fraterno abraço