Com Ciência: Posicionamentos frente ao avanço da tecnologia

Ciência, Tecnologia e Informação
Por Carolina Simas

“Ser sustentável significa agir de maneira sustentável e isto, se levado às últimas consequências, significa ser o próprio produtor de tudo o que consome, ou, sendo menos radical, reduzir drasticamente o consumo, para consumir aquilo que se faz realmente necessário”
(Clóvis de Barros - Professor de Ética/USP)

A relação entre o desenvolvimento tecnológico e o bem-estar social não é mais vista de uma maneira eminentemente direta e linear, em que os avanços tecnocientíficos são diretamente proporcionais ao ganho de qualidade de vida. Após a Segunda Guerra Mundial, começam a ser analisados os impactos econômicos, sociais, ambientais, e os limites éticos do desenvolvimento das tecnologias. As pessoas passaram também a ser mais vigilantes em relação a atitudes que podem colaborar com a sustentabilidade do planeta para garantir não apenas a sobrevivência, mas boas condições de vida para as gerações futuras.

Uma das primeiras premissas é que o processo tecnológico não é algo autônomo. A tecnologia é sempre construída socialmente, e é composta por elementos não técnicos na sua consolidação como, por exemplo, os valores da sustentabilidade. Mas, como alerta Marcel Bursztyn, pesquisador do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB), o conceito de sustentabilidade é tão amplo e plástico, que acaba agradando a todos, embora seja, como atributo do desenvolvimento, uma questão atual. “Em outros momentos da história moderna, desde o século XVIII, a dinâmica econômica foi foco da atenção de estudiosos. Por cerca de um século, a atenção era estritamente sobre a economia. Ao final do século XIX, entretanto, devido a uma série de desajustes sociais, o desenvolvimento passou a considerar também a dimensão social”. Segundo o economista, foi no final do século XX que começamos a prestar atenção também aos aspectos ambientais.

Para Clóvis de Barros, professor de ética da Universidade de São Paulo (USP), a conciliação entre os problemas econômicos, sociais e ambientais – os quais sugerem a necessidade de valores baseados na cooperação e na solidariedade – com valores de um sistema que favorece o individualismo e o consumo, é praticamente impossível porque são valores completamente antagônicos. 
  • “Qualquer um que tente dizer o contrário está, na verdade, mascarando um discurso interessado e cínico, cujo objetivo primordial é a manutenção desse individualismo e consumismo. Se o faz, só pode ser por um motivo: por que se beneficia desse sistema”, afirma o jornalista.
Mesmo o consumo de produtos “verdes”, na concepção de Barros, não pode significar cooperação com a sustentabilidade. 
  • “Ser sustentável significa agir de maneira sustentável e isto, se levado às últimas consequências, significa ser o próprio produtor de tudo o que consome, ou, sendo menos radical, reduzir drasticamente o consumo, para consumir aquilo que se faz realmente necessário”. 
De forma bem humorada, Barros completa seu raciocínio dizendo que o consumidor “mimado” do século XXI não é capaz de resistir à imperativa tentação da compra, e o mercado, por sua vez, cria uma válvula de escape para essa angústia: o produto sustentável. 
  • “Ora, ter 55 sandálias diferentes, feitas de pneus para carro, com plástico de garrafa PET e tinta reaproveitada não é consumir de maneira sustentável. Primeiro porque não elimina a produção desses materiais. Pelo contrário, incentiva. E por outro lado, não compete com o consumo de bens poluentes e não sustentáveis. Garrafas PET continuam sendo vendidas”, acrescenta.
Mas além do controle consumista, ter uma produção alternativa que possa competir com o consumo de bens poluentes seria um bom começo para garantir um planeta mais sustentável. Nos anos 1970, iniciaram-se os investimentos em tecnologias limpas, em decorrência da crise energética e dos apelos de proteção ao ambiente. Essas tecnologias são cada vez mais valorizadas como formas de minimizar a emissão de poluentes e desperdícios de recursos não renováveis. Na área energética há a valorização da energia solar, eólica, dos biocombustíveis. No setor automobilístico vemos a corrida de carros mais econômicos e menos poluentes como a possibilidade do motor “flex” – tecnologia que permite abastecer com álcool, gasolina ou a mistura de ambos – e projetos de veículos híbridos (combinação de duas ou mais fontes de energia) e elétricos. Na alimentação, presenciamos cada vez mais a tendência dos supermercados oferecerem alimentos saudáveis e incentivar práticas ambientalmente adequadas – crescimento da produção e consumo de alimentos orgânicos, redução do uso de sacolas plásticas, utilização do selo com dados da pegada de emissão de carbono nos rótulos de alimentos, entre outras atividades.

A adaptação do desenvolvimento da C&T às questões ambientais está na ordem do dia no processo de inovação de novos produtos e serviços numa perspectiva de produzir “bens sociais” e contribuir para diminuir o efeito estufa. De acordo com Bursztyn, devemos ser prudentes nos avanços tecnológicos uma vez que o cenário geral para o novo século inspira preocupação: os problemas ambientais atuais são de causa antropogênica, isto é, de intervenção humana sobre o meio ambiente. No entanto, temos certos motivos para o otimismo, a começar pelo aumento do grau de consciência. “Se o século XX foi um período de ditadura da produção (os produtores impondo seus produtos aos consumidores, via propaganda), o século XXI parece prenunciar uma certa revanche dos consumidores, que passam a exigir qualidade dos produtos. Vai ficar cada vez mais difícil impor produtos ecologicamente incorretos aos consumidores. Isso já começa a se delinear no comércio internacional e mesmo nas decisões de consumidores mais esclarecidos”, afirma.

Contemplar também os aspectos éticos do desenvolvimento de tecnologias pode ser um tanto utópico devido ao predomínio da ideologia de desempenho da nossa sociedade. “Apesar de a justificativa oficial ser, por exemplo, o conforto e a facilidade, busca-se sempre, na realidade, um aumento da eficiência produtiva de cada um de nós”, diz Barros. Um exemplo é a possibilidade de termos hoje celulares que recebem e enviam e-mails, ação prevista apenas para computadores de mesa. O intuito da nova tecnologia do celular é facilitar a resposta daquela mensagem urgente, agilizar o vai e vem da comunicação etc. Mas, o que aconteceu quando essa tecnologia entrou em cena? Ela deixou de ser uma facilitação, passou a fazer parte da rotina e resultou no aumento exponencial da carga de e-mails.

Percepção pública de C&T

Pesquisas realizadas com público a respeito da percepção sobre os benefícios e malefícios advindos da C&T têm sido realizadas pelo mundo todo. No Brasil, a pesquisa mais recente foi feita em 2008 pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) da Unicamp e dá algumas pistas sobre o que as pessoas pensam sobre esse assunto.

A pesquisa, realizada apenas no estado de São Paulo, revelou que entre os entrevistados, 63,4% se auto-declararam Muito interessados e Interessados em C&T. Foi observada uma associação do interesse pelo nível de escolaridade – 75,8% dos que se declaram Muito interessados têm ensino médio ou superior, enquanto 72,6% dos Nada interessados possuem nível fundamental, apenas educação infantil ou nenhuma escolaridade. Colocar no nível educacional o único problema da falta de interesse em C&T, todavia, é bastante redutor diante da complexidade da questão. “Sabemos que no Brasil, escolaridade é sinônimo de posição social, sinônimo de riqueza. Claro que o nível educacional é uma barreira enorme para quase tudo, mas o problema da má distribuição da renda é igualmente importante. Afinal, não se sabe se a falta de interesse parte de uma ignorância estrutural ou se é apenas um processo de negação, uma fuga do sofrimento que o desejo não realizável inevitavelmente traria”, analisa Barros.

Em uma pesquisa anterior, de 2006, promovida pelo Ministério da Ciência e Tecnologia, verificou-se que 46% da população brasileira acredita que a ciência e a tecnologia trazem mais benefícios que malefícios para a humanidade, principalmente nas áreas da saúde (56%) e no fato de melhorar a qualidade de vida (38%). Dos 5% que responderam que C&T trazem mais malefícios que benefícios, ou apenas malefícios, 54% dizem que esses estão relacionados aos problemas para o meio ambiente. Além disso, 68% concordaram que é necessário os cientistas exporem publicamente os riscos do desenvolvimento científico.

No caso do estado de São Paulo, ao serem questionados sobre riscos ou benefícios da C&T, vê-se que o crescimento de informação científica não equivale ao crescimento dos que acreditam que C&T tragam Muitos benefícios com pouco ou nenhum risco. Pelo contrário, cresce significativamente a porcentagem dos entrevistados que acreditam que o desenvolvimento tecnocientífico traz consigo benefícios junto com riscos. Apesar de a ideia de risco grave estar mais presente nas classes econômicas mais baixas e a ideia de risco moderado às classes mais altas, este indicador talvez reflita o fato dos desastres ambientais terem maior incidência em regiões mais pobres (ver artigo em edição anterior).

A pesquisa sobre percepção pública de C&T em São Paulo também revela a importância do cidadão comum participar dando sua opinião sobre novos desenvolvimentos tecnológicos. Quando perguntados se os cidadãos devem ser ouvidos e sua opinião considerada, 89,5% disseram que sim. Já na amostra nacional, 63% concordam totalmente que devam ser ouvidos nas grandes decisões sobre os rumos de C&T e 26% concordam em parte.

Já a questão “Só o critério dos especialistas tem que ser ouvido” feita para os paulistas, teve como respostas: 56,4% discordam da afirmação, ao passo que 73,4% dos que se auto-declararam Muito interessados por C&T admiram os cientistas – assim como 60% da população brasileira acha os cientistas pessoas que fazem coisas úteis para a humanidade.

O incentivo à participação dos cidadãos das tomadas de decisão sobre C&T é algo bem visto – 63% dos entrevistados paulistas concordam totalmente que a população deve ser ouvida nas grandes decisões sobre o assunto –, entretanto, isso não isenta a idoneidade e responsabilidade do cientista perante a invenção da sua técnica. Isso quer dizer que a técnica não acaba na entrega do produto e sim no final do seu ciclo de vida. Para Bursztyn, um exemplo dessa lógica está no fato de que ainda não foi possível estancar o recente vazamento de óleo no Golfo do México. Houve a aplicação de tecnologia de ponta para extrair hidrocarboneto de águas profundas, só que não se pensou na possibilidade de um acidente e o resultado foi que, um mês depois, ainda não se sabe como frear o vazamento. “A lição que fica é: só vale a pena adotar um padrão tecnológico se sabemos suas implicações e temos como conter os efeitos indesejados de algum tipo de acidente”, diz Bursztyn, ressaltando que não devemos ser obscurantistas e barrar qualquer avanço no conhecimento, o necessário é apenas se precaver.

Ainda como resultados da pesquisa de percepção pública no estado de São Paulo, verificou-se um alto grau de preocupação com o bem comum, a partir das respostas para a pergunta: “Se tiver a mínima possibilidade de um risco grave, não permitiria a aplicação da novidade científica e tecnológica”, 76,2% responderam que Concordam ou Concordam muito e também para a seguinte questão: “Aceitaria sempre que houvesse um benefício para a comunidade”? E 75,6% afirmaram que aceitariam. Vale ressaltar que as classes C e D/E são as que enxergam menos benefícios na ciência e tecnologia nos próximos anos, em contrapartida, aumentam-se as expectativas de maiores benefícios nas classes mais abastadas. Provavelmente, o motivo das classes mais baixas não apontarem os benefícios, seja em detrimento de não acreditarem no seu usufruto porque envolve um poder econômico que não possuem.

Concluindo, é claro que quanto maior o nível de instrução e acesso à informação do indivíduo, maior a percepção do papel da C&T, e maiores as preocupações com o futuro, manifestados por um pensamento estruturado sobre os riscos que temos pela frente e a intenção de ser ouvido quanto a questões que afetarão seu futuro. 
  • “Mas é preciso ponderar que nem todos estão suficientemente esclarecidos, a ponto de não dependerem de notícias e análises da mídia, que nem sempre é esclarecedora. Um exemplo atual é a nanotecnologia, que parece ser a bola da vez a interagir com vários campos do conhecimento e não se sabe ainda quais as suas implicações éticas, nem sequer as potencialidades de uso”, enfatiza Bursztyn. 
Assim, as pesquisas de percepção pública de C&T podem esclarecer qual é a opinião da sociedade sobre o tema, orientar o papel da mídia no processo de produção do conhecimento e verificar questões que precisam inicialmente de aval idôneo dos especialistas. 

Fonte: Revista Eletrônica de Jornalismo Científico

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