Cinema: E 5x favela vai à Cannes
5 x favela, agora por nós mesmos
FAVELÁRIO NACIONAL
1. ProsopopeiaQuem sou eu para te cantar, favela,
que cantas em mim e para ninguém a noite inteira de
[sexta
e a noite inteira de sábado
e nos desconheces, como igualmente não te
[ conhecemos?
Sei apenas do teu mau cheiro: baixou a mim, na
[ viração
direto, rápido, telegrama nasal
anunciando morte... melhor, tua vida.
Decoro teus nomes. Eles
jorram na enxurrada entre detritos
da grande chuva de janeiro de 1966
em noites e dias e pesadelos consecutivos.
Sinto, de lembrar, essas feridas descascadas na perna
[ esquerda
chamadas portão Vermelho, Tucano, Morro do Nheco,
Sacopã, Cabritos, Guararapes, Barreiro do Vasco,
Catacumba catacumbai tonotruante no passado,
e vem logo urubus e vem logo Esqueleto,
Tabajaras estronda tambores de guerra,
Cantagalo e Pavão soberbos na miséria,
a suculenta mangueira escorrendo caldo de samba,
Sacramento... Adora, Caracol. Atenção, pretos
[ Forros!
O mundo pode acabar esta noite, não como nas
[Escrituras se estatui.
Vai desabar, grampiola por grampiola,
trapizonga por trapizonga,
tamanco, violão, trempe, carteira profissional, essas
[ drogas todas,
esses tesouros teus, altas alfaias.
Vai desabar, vai desabar
o teto de zinco marchetado de estrelas naturais
e todos, ó ainda inocentes, ó marginais estabelecidos,
[morrereis
pela ira de Deus, mal governada.
Padecemos este pânico, mas
o que se passa no morro é uma passar diferente,
dor própria, código fechado: Não se meta,
paisano dos baixos da Zona Sul
Tua dignidade é teu isolamento por cima da gente.
Não sei subir teus caminhos de rato, de cobra e
[baseado
tuas perambeiras, templos de Mamalapunam
em suspensão carioca (ou paulista).
Tenho medo. Medo de ti, sem te conhecer,
medo só de te sentir, encravada
favela, erisipela, mal-do-monte
na coxa flava do Rio de Janeiro
[da Chuiça, e das belas Minas, e dos Ourixás, e das Marmelas
Medo: não de tua lâmina nem de teu revólver
nem de tua manha nem de teu olhar.
Medo de que sintas como sou culpado
e culpados somos de pouca ou nenhuma irmandade.
Custa ser irmão,
custa abandonar nossos privilégios
e traçar a planta
da justa igualdade.
Somos desiguais
e queremos ser
sempre desiguais.
E queremos ser
bonzinhos benévolos
comedidamente
sociologicamente
mui bem comportados.
Mas, favela, ciao,
que este nosso papo
está ficando tão desagradável.
Vês que perdi o tom e a empáfia do começo?
(Carlos Drummond de Andrade)
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