Dica: Como escolher o tesoureiro ideal
Literatura
Pertinente, em dias atuais, a receita de Voltaire para se escolher, dentre tantos candidatos, um tesoureiro que beire à honestidade:
A DANÇA
Foto: A jóia da Coroa
Por François Marie Arouet
Setoc devia ir para assuntos comerciais, à ilha de Serendib; mas o primeiro mês de seu casamento, que é, como se sabe, a lua de mel, não lhe permitia deixar a esposa, nem supor que jamais pudesse deixá-la: pediu a Zadig que fizesse a viagem em seu lugar. “Ai! — suspirava este. — Devo ainda colocar maior distância entre mim e a bela Astartéia?! Mas estou na obrigação de servir a meus benfeitores”. Assim disse, chorou e partiu.
Não demorou muito em Serendib sem que fosse considerado um homem extraordinário. Tornou-se árbitro. de todas as questões entre os negociantes, amigo dos sábios e conselheiro do pequeno número de pessoas que ouvem conselhos. O rei manifestou desejos de o ver e ouvir. Reconheceu logo o valor de Zadig; confiou na sua sabedoria e fez dele seu amigo. A familiaridade e estima do rei fizeram-no tremer. Dia e noite recordava os males que lhe haviam acarretado as boas graças de Moabdar. “Se agrado ao rei — pensava ele, não estarei perdido?” Não podia, contudo, furtar-se às gentilezas da Sua Majestade: pois cumpre confessar que Nabussan, rei de Serendib, filho de Nussanab, filho de Nabassun, filho de Sanbusná, era um dos melhores príncipes da Ásia e que, quando se lhe falava, tornava-se difícil deixar de amá-lo.
Esse bom príncipe era sempre louvado, enganado e roubado; esforçavam-se, à porfia, a ver quem mais lhe pilhava os tesouros. O recebedor geral da ilha de Serendib dava o exemplo, seguido fielmente pelos outros. O rei sabia-o: por várias vezes mudara de tesoureiro; mas não pudera mudar o costume estabelecido de dividir os proventos do rei em duas partes, a menor das quais cabia sempre à Sua Majestade, e a maior aos administradores.
O rei Nabussan confiou seus cuidados ao sábio Zadig.
— Tu que sabes tão belas coisas — disse-lhe ele, — não saberias encontrar-me um tesoureiro que não roube?
— Sem dúvida — respondeu Zadig. — Sei um meio infalível de conseguir-lhe um homem de mãos limpas.
O rei, encantado, perguntou-lhe, abraçando-o, como deveria proceder.
— É só fazer dançar todos aqueles que se candidatem à dignidade de tesoureiro, e aquele que dançar com mais leveza será infalivelmente o homem mais honrado.
— Estás zombando — disse o rei. — Eis um modo bastante esquisito de escolher um tesoureiro... Como? Julgas então que aquele que fizer melhor um entrechat será o financista mais probo e mais hábil?
— Não garanto que seja o mais hábil — retrucou Zadig, — mas asseguro que será indubitavelmente o mais honesto.
Falava Zadig com tamanha segurança que o rei o julgou possuidor de algum segredo sobrenatural para reconhecer os financistas.
— Não me agrada o sobrenatural — disse Zadig, — sempre detestei as pessoas e livros mágicos: se Vossa Majestade deixar-me fazer a prova que lhe proponho, há de convencer-se de que o meu segredo é a coisa mais simples e mais fácil deste mundo.
Nabussan, rei de Serendib, ficou muito mais espantado de ouvir que esse segredo era simples do que se lho houvessem apresentado como um milagre.
— Está bem — disse ele, — fase como bem entenderes.
— Deixe o caso comigo — tornou Zadig — e Vossa Majestade ganhará com essa experiência muito mais do que supõe.
No mesmo dia mandou afixar que todos os pretendentes ao cargo de recebedor-mor dos dinheiros de Sua Graciosa Majestade Nabussan, filho de Mussanab, deveriam apresentar-se, vestidos de seda leve, a 1a. da lua do crocodilo, na antecâmara do rei.
Ali compareceram, em número de sessenta e quatro. Tinham reunido rabequistas num salão vizinho; tudo achava pronto para o bailado; mas a porta desse salão estava fechada, e, para ali entrar, era preciso passar por uma pequena galeria bastante escura.
Um guarda vinha buscar e introduzir cada candidato, um após outro naquela passagem, onde o deixava sòzinho alguns minutos. O rei, que estava a par de tudo, expusera todos os seus tesouros na referida galeria.
Depois que todos os pretendentes chegaram ao salão, Sua Majestade lhes ordenou que dançassem. Jamais se dançou tão pesadamente e com menos graça; tinham todos a cabeça baixa, o busto encolhido, as mãos coladas ao corpo. “Que velhacos!” — dizia Zadig em voz baixa.
Um só dentre eles dançava com agilidade, de cabeça alta, olhar seguro, braços estendidos, corpo direito e jarretes firmes; “Ah! que homem honrado! que excelente homem!” — dizia Zadig.
O rei abraçou aquele bom dançarino, proclamou-o tesoureiro, e todos os outros foram punidos e multados com a maior justiça do mundo: pois cada qual, durante o tempo em que estivera na galeria, atulhara os bolsos e mal podia andar.
Muito vexado se sentiu o rei com a natureza humana pelo fato de haver, entre aqueles sessenta e quatro dançarimos, sessenta e três gatunos.
- A galeria escura foi chamada o corredor da tentação.
Se fosse na Pérsia, teriam empalado aqueles sessenta e três senhores; em outros países, formariam um tribunal de justiça que consumiria nas custas do processo o triplo do dinheiro roubado e que nada reporia nos cofres do rei; em outro reino, os sessenta e três se justificariam plenamente e fariam cair em descrédito aquele dançarino tão leviano: em Serendib, apenas foram condenados a aumentar o tesouro público, pois Nabussan era muito indulgente.
Era também muito reconhecido: deu a Zadig uma quantia mais considerável do que qualquer tesoureiro jamais roubara a el-rei seu senhor. Zadig se utilizou da soma para enviar correios a Babilônia, que deviam informá-lo do destino de Astartéia. A voz tremeu-lhe ao dar essa ordem, o sangue lhe fluiu para o coração, seus olhos cobriram-se de trevas, a alma esteve a ponto de abandoná-lo. O mensageiro partiu, Zadig o viu embarcar; entrou no palácio, sem ver ninguém, como se estivesse em seu quarto, e pronunciando a palavra amor.
— Ah! o amor — disse o rei, — é precisamente do que trata; adivinhaste a minha pena. És um grande homem! Espero que me ensines a descobrir uma mulher acima de qualquer suspeita, como me fizeste encontrar um tesoureiro desinteressado.
Zadig, voltando a si, prometeu servi-lo no amor como em finanças, embora a coisa lhe parecesse ainda mais difícil.
François Marie Arouet Le Jeune - Também conhecido por Voltaire
In Contos. Paris, 1694-1778.
François Marie Arouet Le Jeune - Também conhecido por Voltaire
In Contos. Paris, 1694-1778.
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