Jornalismo: um capítulo empolgante
XXIX
Jornalismo
Senhores que dispensam apresentações, creio.
"Caríssimos amigos
sempre chega a hora de abrir a boca. Assim, a colenda congregação que me conferiu este título honoris causa terá a oportunidade de se arrepender.
Um bom amigo me sugeria: ponha por escrito o que pretende dizer. Pus. Assim todos vocês terão a oportunidade de verificar que pronuncio mediocridades tanto de improviso quato por escrito. De todo modo, obrigado. Do fundo do coração.
Neste exato instante, gostaria de partir para a exposição de um capítulo empolgante, o qual, apresentado com os adjetivos e os verbos devidos, elevaria gloriosamente o tom deste meu... discurso? Palestra? Alguém sugeriu: aula magna. Aula magna? Quem atravessou a vida e continua necessitando de aulas, magnas e nem tanto, sou eu.
Nem por isso careço de sinceridade e com ela contarei eventos da minha existência de jornalista e ideias que tenho a respeito da profissão, esta na qual vocês me supõem mestre, com infinita generosidade. De fato, ouvi da boca de quem me precedeu elogios que, de longe, transcendem a realidade dos fatos e meu efetivo desempenho. Tomo esses elogios como prova da bondade humana e das emoções do momento. De todo modo, me cabe esclarecer que virei jornalista por causa de um terno azul-marinho.
Como vêem, esta não é uma história arrebatadora, ainda que o terno azul-marinho seja o rei dos ternos e o mais adequado para grandes acontecimentos. Nos meus flamantes 15, 16 anos, queria era um terno sob medida, confeccionado por alfaiate de larga competência. Era um tempo em que a moçada ia aos bailes do sábado de terno e gravata, pasmem, para dançar boleros e sambinhas langorosos. Slow-fox também. Valsas até.
Eu não me sentia especialmente à vontade ao dançar valsas acondicionado dentro de um duvidoso produto das lojas Garbo, de cor incerta, inescapavelmente destinado a me conferir um aspecto soturno. Até que um dia meu pai surge e escancara uma súbita chance de alegria. A Copa do Mundo vai ser disputada aqui e meu pai recebe a carta do diretor de um jornal estrangeiro. Pede o nome de alguém capaz de contar a preparação do torneio.
Meu pai propõe:
_Por que você não escreve? (intrigante: nepotismo não é algo muito novo em terras tupininquins, aparte meu)
_ Quanto vale? perguntei. (Dinheiro não traz felicidades, manda comprar. Até o reino mineral também sabe disso, aparte meu)
Valia (mais-valia, sempre) o suficiente para cobrir a despesa do terno ambicionado. (ambição: pecado capital)
Então eu sonhava em ser pintor e não perdia a ocasião de manifestar o meu radical desinteresse pelo jornalismo. Resta o fato de que topei escrever os tais artigos e pude comparecer à alfaiataria de renomado artista do corte, para a feitura de um terno azul-marinho, o qual foi decisivo para a substancial melhorias dos meus passos de dança e de alguns mais, igualmente significativos.
Descobri, por outra, que o jornalismo tinha encantos e facilidades. Com isso confesso que o espírito mercenário (creio que a imprensa nativa careça de mais espíritos como estes que ver-se-á seguir) me moveu na direção da imprensa sem a esperança de que vocês me relevem.
E com tal espírito por longos anos exerci a profissão. Como se deu que, lá pelas tantas, ganhei a consicência das verdadeiras e mais profundas responsabilidades do jornalismo?
De início, a possibilidade de comandar redações em jovem idade (nepotismo não, talento precoce, lembram os meus botões) pesou muito na balança, que ninguém é de ferro. Depois, pesou a situação deste país, cuja elite sempre intervém para impedir que desequilíbrios vertiginosos e contradições espantosas alcancem o ponto de fervura. As elites, com o pronto apoio dos aspirantes à elite, esta minoria (com complexo de maioria?) que estranhamente chamamos de classe média (classe mérdia, a meu ver, é mais apropriado). Não direi nada de novo lembrando o golpe, e o golpe dentro do golpe de quatro anos após, e todos os demais pactos destinados a manter no poder a aliança conservadora.
Valeu, finalmente, o desafio de praticar o jornalismo em meio à censura do regime militar. Não aprecio a palvra desafio, mas não acho outra, e ela não deixa de ser adequada para qualificar um movimento espontâneo de rebeldia contra a prepotência, misturado com a certeza de servir honestamente o leitor a despeito dos riscos da situação. Sempre que completei o gesto, colhi as maiores satisfações da minha vida profissional. Experimentei um sentimento arrebatado, inebriante, como ao tomar o melhor vinho do mundo, um Porto das quintas, digamos, ou ao achar finalmente o amor da nossa vida.
"Os homens se medem em situação", dizia Benvenuto Cellini, escultor e ourives, além de espadachim e autor de frases dignas de memória. Na redação assolada pela censura e constantemente ameaçada pelos esbirros da ditadura, muitos profissionais apuraram a consciência da cidadania (o bem vem através do mal, como dizia minha saudosa Vovó - que Deus a tenha), das razões do jornalismo. De minha parte, aprendi coisas que talvez me escapassem de outra maneira e em outras circunstâncias. Tempo de empolgação e medo, por mais estranha que pareça a combinação. De empolgação, medo e enorme esperança.
Ah, sim a esperança. A esperança de ter ainda tempo de sobra para viver em um país digno da contemporaneidade do mundo. Não nasci aqui, o que implica mérito vedado ao nativo: fiz uma escolha deliberada, enquanto ele ficou na mão do destino. Eu tive autonomia, ele nenhuma. E quem gosta mesmo dessa terra sou eu. Gosto tanto que desejaria para ela destino melhor. Governantes, políticos dea situação e da oposição, a elite do dinheiro e do saber - tudo melhor. Técnicos de futebol, Jornalistas também. Gostaria de conviver com um maior número de colegas que se empenham no exercício do espírito crítico e, quem sabe, mantêm empinado, como pipa no espaço dos ventos, o senso de humor.
Tenho o prazer e o orgulho da minha origem, mas fiz uma opção (a recíproca também é verdadeira) por este país. E, por obra e graça desta opção, acda e constanteo o jornalismo com dedicação enlevada e constante (poucos nesta esfera, por aqui, podem dizer isto). Dando o melhor de mim, dentro dos meus modestos alcances e exíguos conhecimentos (quanta modéstia...mestre!).
O que posso afirmar é que obedeci à convicção (avassaladora maioria obedecem a outras conveniências) de que, como diz Hannah Arendt, "não há esperança de sobrevivência humana sem homens dispostos a dizer o que acontece, e que acontece porque é".
Tenho convicções mais. Por exemplo: quando a verdade é omitida, ou falseada, nem se fale quando é encoberta pela mentira (especialidades vastas e reconhecidas de nossa mídia), ela soçobra como um barco furado e jamais será recuperada (nossa hisória que o diga). falo aí da verdade factual e não das mil verdades que cada qual carrega.
- A verdade factual é uma só. Esta de onde lhes falo é uma mesa. Este é um microfone. Este é o pais de doenças erradicadas no resto do mundo, de milhões de crianças abandonadas, da pior distribuição de renda.
Quanto a nós, praticamos um jornalismo pretensioso e conivente, com raras e honrosas exceções, obedecendo à vontade dos patrões com submissão de escravo ou de jagunço. Lembro-me de um tempo em que jornalistas viam como missão precípua da profissão elevar os leitores, iluminá-los. Estou com saudades. Serei ingênuo, iludido? Talvez. Sei, de todo modo, que se tivesse ficado na terra em que nasci não teria sido jornalista. Fui e sou porque estou aqui. E acredito que, por causa disso, esta nobre escola me propicia uma noite de grande alegria.
Muito obrigado"
Mino Carta
[Por ocasião da Palestra na cerimônia de entrega de diploma honoris causa, pronunciada 20 anos depois da ação do capítulo anterior (XXVIII - Homens de Futuro) e aqui publicada por razões que o leitor (atento, diria) enderá]
Fonte: Do livro O Castelo de Âmbar, Mino Carta. (comentários em azul são da responsabilidade do editor deste blog)
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