Justiça: o cão e o cavalo

Foto: Nossa justiça, um cavalo negro perdido...

Por François-Marie Arouet (*)


Zadig reconheceu que o primeiro mês do casamento é mesmo, como está escrito no Zenda, a lua de mel, e que o segundo é a lua de fel. Viu-se dentro em pouco obrigado a repudiar Azora, que se tornara dificílima de trato, e buscou refúgio no estudo da natureza.

“Ninguém pode ser mais feliz — dizia ele — do que um filósofo que lê nesse grande livro colocado por Deus ante nossos olhos. É dono das verdades que descobre; alimenta e eleva a alma; vive tranqüilo; nada teme dos homens, e a sua extremosa mulher não lhe vem cortar o nariz”.

Penetrado dessas idéias, retirou-se para uma casa, de campo à margem do Eufrates. Ali, não se preocupava ele era calcular quantas polegadas de água corriam por segundo sob os arcos de uma ponte, ou se caía mais uma linha cúbica de chuva no mês do rato do que no mês do carneiro. Não planejava fabricar seda com teias de aranha, nem porcelana com cacos de garrafa; ma dedicou-se principalmente ao estudo dos animais e das plantas, adquirindo em breve uma agudeza que lhe desvendava mil diferenças onde os outros não viam que uniformidade.

Ora, estando um dia a passear pelas proximidades de um bosque, acorreu-lhe ao encontro um eunuco da rainha, seguido de vários oficiais que demonstravam a maior inquietação e vagavam de um lado para outro, como pessoas desorientadas que houvessem perdido a maior preciosidade deste mundo.

— Jovem — disse-lhe o primeiro eunuco, — não viste o cão da rainha?

— É uma cadela, e não um cão respondeu Zadig discretamente.

— Tens razão — tornou o primeiro eunuco.

— É caçadeira, e por sinal que muito pequena — acrescentou Zadig. — Deu cria há pouco; manqueja da pata dianteira esquerda e tem orelhas muito compridas.

— Viste-a, então? — perguntou o primeiro eunuco, esbaforido

— Não — respondeu Zadig, — nunca a vi na minha vida nem nunca soube se a rainha tinha ou não uma cadela. Ao mesmo tempo, por um ordinário capricho da sorte, sucedeu escapar-se das mãos de um palafreneiro o mais belo exemplar das cavalariças do rei, extraviando-se nos campos de Babilônia. O monteiro-mor e todos os outros oficiais corriam à sua procura com mais inquietação do que o primeiro eunuco em busca da cadela. O monteiro-mor dirigiu-se a Zadig e perguntou-lhe se não vira acaso o cavalo do rei.

— É — respondeu Zadig — o cavalo de melhor galope; tem cinco pés de altura e os cascos pequenos; a cauda mede três pés e meio de comprimento; o freio é de ouro de vinte e três quilates; e as ferraduras de prata de onze denários.

— Que direção tomou ele? onde está? — perguntou o monteiro-mor.

— Não o vi — respondeu Zadig, — nem nunca ouvi falar nele.

O monteiro-mor e o primeiro eunuco não tiveram mais dúvidas de que Zadig houvesse roubado o cavalo do rei e a cadela da rainha; levaram-no perante a assembléia do grande desterham, que o condenou ao knut e a passar o resto da vida na Sibéria. Mal se encerrara o julgamento, foram encontrados o cavalo e a cadela. Viram-se os juízes na dolorosa obrigação de reformar sua sentença; mas condenaram Zadig a desembolsar quatrocentas onças de ouro, por haver dito que não vira o que tinha visto. Primeiro foi preciso pagar a multa; depois concederam-lhe licença para se defender perante o conselho do grande desterham. Zadig falou nos seguintes termos:

  • “Estrelas de justiça, abismos de ciência, espelhos da verdade, vós que tendes o peso do chumbo, a dureza do ferro o fulgor do diamante e tanta afinidade com o ouro! Já que me é dado falar perante essa augusta assembléia, juro-vos por Orosmade que jamais vi a respeitável cadela da rainha, nem o sagrado cavalo do rei dos reis. Eis o que me aconteceu. Passeava eu pelas cercanias do bosque onde vim a encontrar o venerável eunuco e o ilustríssimo monteiro-mor, quando vi na areia as pegadas de um animal. Descobri facilmente que eram as de um pequeno cão. Sulcos leves e longos, impressos nos montículos de areia, por entre os traços das patas, revelaram-me que se tratava de uma cadela cujas tetas estavam pendentes, e que portanto não fazia muito que dera cria. Outras marcas em sentido diferente, que sempre se mostravam no solo ao lado das patas dianteiras, denotavam que o animal tinha orelhas muito compridas; e, como notei que o chão era sempre menos amolgado por uma das patas do que pelas três outras, compreendi que a cadela de nossa augusta rainha manquejava um pouco, se assim me ouso exprimir. Quanto ao cavalo do rei dos reis, seja-vos cientificado que, passeando eu pelos caminhos do referido bosque, divisei marcas de ferraduras que se achavam todas a igual distância.

  • “Eis aqui — considerei — um cavalo que tem um galope perfeito”. A poeira dos troncos, num estreito caminho de sete pés de largura, fora levemente removida à esquerda e à direita, a três pés e meio do centro da estrada. “Esse cavalo — disse eu comigo — tem uma cauda de três pés e meio, a qual, movendo-se para um lado e outro, varreu assim a poeira dos troncos”. Vi debaixo das árvores, que formavam um dossel de cinco pés de altura, algumas folhas recém-tombadas e concluí que o cavalo lhes tocara com a cabeça e que tinha, portanto, cinco pés de altura. Quanto ao freio, deve ser de ouro de vinte e três quilates: pois ele lhe esfregou a parte externa contra certa pedra que eu identifiquei como uma pedra de toque. E, enfim, pelas marcas que as ferraduras deixaram em pedras de outra espécie, descobri eu que era prata de onze denários”.

Todos os juízes pasmaram do profundo e sutil discernimento de Zadig, o que logo chegou aos ouvidos do rei e da rainha. Só se falava em Zadig nas antecâmaras, na câmara e no gabinete; e, embora vários magos opinassem que o deviam queimar como feiticeiro, ordenou o rei que lhe restituissem as quatrocentas onças de ouro a que fora multado. O escrivão, os meirinhos, os procuradores, compareceram em grande pompa à presença de Zadig, para lhe entregar as suas quatrocentas onças; apenas retiveram trezentas e noventa e oito para as custas do processo, e os seus ajudantes reclamaram gratificação.

Zadig compreendeu como era às vezes perigoso ser demasiado sábio, e jurou consigo que, na próxima ocasião, nada diria do que acaso houvesse testemunhado.

Essa oportunidade não se fez esperar. Um prisioneiro de Estado, que fugira, passou pelas janelas de sua casa. Zadig, interrogado, nada respondeu; mas provaram-lhe que ele olhara pela janela. Foi multado, por esse crime, em quinhentas onças de ouro, e ele agradeceu a indulgência dos juízes, segundo o costume de Babilônia.
  • Como é lamentável, meu Deus, — dizia ele consigo, — ir a gente passear num bosque por onde passaram a cadela da rainha e o cavalo do rei! Que perigoso chegar à janela! E que difícil ser feliz nesta vida!

Voltaire - Contos

(*) Voltaire (François-Marie Arouet)

Foi um dos grandes filósofos do Iluminismo. Dentre as suas qualidades destaca-se a ironia, às vezes gentil, em outras sarcástica e, não poucas vezes, profundamente destrutiva. 

Suas obras dão sentido à velha máxima: “Ridendo Castigat Mores” (com o riso castigam-se os costumes).

Zadig não é diferente; ironiza o poder, a organização política, a riqueza, o orgulho, as pretensões da burguesia: a riqueza, a inveja e muito mais.

Tanto vale em seu século, assim como no nosso.

Zadig, nesse conto, bem que poderia ser o jovem e íntegro magistrado que combateu notórios criminosos tupininquins em tempos recentes. 

A ignorância explícita na narrativa revela a mesma ignorância (proposital) da nossa mídia, graúda e miúda, em relação ao seu íntegro, dedicado e competente trabalho.  

O cão nada mais representa senão os medalhões da imprensa nativa. O Cavalo perdido, a nossa justiça. 

Como os nobres da Corte de lá, assim se comportam cá futuros ilustres senhores que ornamentam supremas cortes.

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