Crônica: Convite ao Silêncio

P.S.

CONVITE AO SILÊNCIO

 "Agora eu era o herói
E meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você além das outras três..."

Por Ilona Hertel *

Ainda me lembro de minhas brincadeiras de criança. Não tínhamos muitos brinquedos. Em compensação, as crianças de minha família tinham muitas oportunidades de desenvolver o seu repertório lúdico.

No meu caso, como havia muitos livros em nosso redor, brincava com a construção de narrativas, motivada pelas histórias. Era a casinha embaixo da mesa, repleta de filhos e de angústias, entre outras invenções comuns nas novelas que minha mãe lia - e eu também, escondida dela.

Havia também as situações do circo, uma vez que minha família, desde muitos antepassados, vinda do Leste Europeu, era de artistas de circo. Brincávamos, minha irmã e eu, de malabarismo, mágica, trapézio nos balanços...

Assim, não me lembro de acumular frustrações porque não tinha o brinquedo mais moderno e a boneca mais cara do mercado.

Quase tudo que havia em casa virava brinquedo. Nós construíamos nossas narrativas brincantes, ora nos transformando em personagens de nossas brincadeiras, ora dando vida aos objetos, que se transfiguravam em personagens da narrativa. Desta forma, a almofada virava o bebê, os botões furtados da caixa de costura viravam jóias, etc.

Em minha trajetória como educadora, pude observar muitas crianças brincando, nas mais diferentes situações. E é impossível esquecer o relato que ouvi de meninos e meninas em situação de rua, com quem trabalhei ao longo de quase uma década.

Conversávamos sobre tudo, inclusive suas brincadeiras. E, nessas conversas, revelava-se um lado trágico desta questão: os meninos contavam que quando estavam nos semáfaros, assustando e vitimando as pessoas, consideravam tudo uma grande brincadeira. Brincar de bandido e mocinho. Assustador.

Nosso trabalho, então, era o de demonstrar para estes meninos que as demais pessoas envolvidas na cena não viviam a experiência da mesma forma. Elas viviam o terror. E nessas conversas, que duravam muito, às vezes esses meninos entendiam que era impossível para suas vítimas perceberem que eles jamais efetivariam as suas ameaças.

Outro caso revelador do papel da brincadeira encontrei no relato de uma menina, hoje jornalista, que teve dezenas de passagens pela antiga FEBEM - Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor -, uma vez que vivia nas ruas e praticava furtos.

Ela conta que era comum, nestes lugares, os adolescentes permanecerem o dia todo sentados ao sol, apenas com rouás íntimas, sem poder se comunicar com ninguém. Relata que passava esses longos dias brincando com suas mãos, construindo narrativas onde seus dedos convertiam-se em personagens e, pela aridez de sua vida, podemos imaginar do que brincava esta menina.

Nestes tempos de grande apelo ao consumo de brinquedos fabricados, ou seja, onde a criança é tomada antes de tudo como consumidora, precisamos tomar consciência de que as crianças não precisam que os brinquedos sejam a razão do encontro para as brincadeiras. Os brinquedos são coadjuvantes e as crianças protagonistas. Elas precisam de tempo e espaço. E de algo mais: silêncio.

Assim voltando ao título deste artigo, convido todos os adultos que vierem a lê-lo que, diante de crianças brincando sozinhas ou com seus pares, imagine uma placa que diz: SILÊNCIO! CRIANÇAS BRINCANDO!

Que abra mão de ter que ensinar tudo. Que reconheça a inteligência de que toda criança é dotada e que lhe garante o acesso à cultura de sua comunidade. Temos muito a ensinar, mas isso tem tempo e lugar para acontecer.

Devemos cessar de imediato os processos que furtam a infância de nossas crianças. Precisamos devolver o direito de brincar em liberdade e com seus pares.

Deste modo, parafraseando uma amiga ambientalista, antes de pensar que mundo deixaremos para nossos filhos, cabe-nos pensar que filhos deixaremos para o mundo.

Como diz Lydia Hortélio, pesquisadora do universo brincante, brincar é uma questão ecológica. E, por favor, silêncio!

(*) Ilona Hertel - Pedagoga, é Assistente Técnica da Gerência de Programas Socioeducativos do SESC/SP

Fonte: Revista E  

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