Economia: Crise, de quem é a culpa mesmo?
Quase metade dos proprietários dos Estados Unidos que tem financiamento da casa própria terão acumulado dívida superior ao valor de seus imóveis antes do fim da recessão, de acordo com estimativa do Deutsche Bank AG. A porcentagem de empréstimos “afogados” pode subir para 48%, ou 25 milhões de imóveis, já que a queda de preços no setor imobiliário deve seguir até o primeiro trimestre de 2011, escreveram Karen Weaver e Ying Shen, analistas do Deutsche Bank de Nova York, em um relatório publicado em 6 de agosto.
Em dezembro de 2006, alguns meses depois do pico de alta do mercado imobiliário, o valor total das propriedades residenciais dos Estados Unidos estava em 21,9 trilhões de dólares. Os preços cairam 31% desde o fim de 2006, para um valor hoje estimado em 15 trilhões; no entanto, o valor das dívidas em financiamento permanece inalterado em 10,6 trilhões. Em outras palavras, enquanto a relação dívida-valor do mercado imobiliário dos Estados Unidos era de 48% em dezembro de 2006, agora está em 70% e vai subir para 80% antes que a queda de preços sofra reversão.
Apesar de dolorido, um aumento dessa magnitude poderia ser gerenciável não fosse pelo fato de que a renda e a riqueza nos Estados Unidos são extremamente concentrados. Os 1% no topo representam mais de 20% da renda nacional, enquanto a renda domiciliar média não sofreu aumento nos últimos dez anos. Dentro do domicílio médio, assim, existe uma tremenda vulnerabilidade financeira que não foi atacada pelo governo Obama. A propriedade imobiliária nos Estados Unidos é muito maior que em outras economias modernas. A posse de ações também é alta.
O estouro das bolhas imobiliária e de ações destruiu a riqueza da classe média dos Estados Unidos num grau devastador. E é nessa classe média que o alto endividamento privado está. Se houver desdobramentos da crise financeira nos Estados Unidos provavelmente isso vai acontecer nos domicílios. Se a dinâmica da recessão vai deprimir a demanda agregada através da destruição de riqueza, provavelmente será no setor domiciliar.
Quase um terço de todos os domicílios dos Estados Unidos não pagam financiamento. Feito esse ajuste, a taxa de endividamento de 70 a 80% de repente se torna um grande desafio porque significa que os dois terços que pagam financiamento estão diante de dívidas que superam os 100% do valor do imóvel. Pior ainda, assim que a queda de preços acabar, dois terços dos domicílios americanos estarão diante de uma taxa de dívida de 120 a 125%, em média. Os consumidores americanos estão quebrados.
Obviamente, os domicílios têm outros bens. Mas está claro que o consumidor americano tem estado repetidamente no lado perdedor do estouro das bolhas da economia americana. O colapso das empresas de informática [bolha dot.com] e a mais recente queda nos preços do mercado imobiliário mostram que a maioria dos domicílios americanos está sob o maior stress financeiro da história desde a Grande Depressão. E ainda assim a política do governo tem sido a de “resolver” os “problemas” do setor financeiro (onde a maior parte da riqueza do país está concentrada) e esforços mínimos foram feitos para resolver os problemas dos domicílios e dos negócios não-financeiros.
Como o relatório do Deutsche Bank ilustra, a habilidade dos domicílios de gastar depende de três fatores. A entrada de dinheiro (que depende de renda, das prestações de financiamentos e dos impostos), crédito (empréstimos bancários) e valor das propriedades (preços do mercado imobiliário). Agora, devendo mais que o valor de suas casas, com maior pressão sobre a renda como resultado da recessão e praticamente sem poupança para amortecer a dor, a maioria dos domicílios americanos não tem escolha: precisa cortar o consumo drasticamente. E com os consumidores americanos forçados a não gastar, a recuperação global empalidece na falta de estímulo fiscal sustentado que focalize na demanda agregada, não no balanço dos bancos, como tenho repetidamente enfatizado.
A economia americana hoje está esmagada por endividamento maciço dos domicílios. A manutenção do status quo não é solução. As propostas do governo para dar alívio aos devedores através da renegociação dos financiamentos fracassaram miseravelmente. A renda pessoal está em queda num ritmo terrível. Já perderam o emprego 6,5 milhões de pessoas — com junho acrescentando meio milhão de empregos perdidos. As promessas do governo de um pacote de estímulo que crie 3,5 milhões de empregos nos próximos dois anos não são satisfatórias. E ainda pedem para que sejamos “pacientes”.
Precisamos de programas federais que gerem emprego e renda e que restaurem a capacidade dos emprestadores de pagar e a lucratividade das empresas. Precisamos de um pacote para aliviar os domicílios do peso intolerável de suas dívidas. Além disso, dado que a atual crise foi alimentada em parte por um boom do mercado imobiliário, precisamos achar uma forma de lidar com a grande oferta de imóveis que está devastando comunidades, ao provocar o esvaziamento de casas, derrubando os preços e aumentando o custo social da crise. E temos de controlar os renascidos falcões do déficit, que de repente se preocupam em pagar o gasto adicional do governo aumentando os impostos ou pregando o corte de gastos.
Se os preços das casas continuarem a cair o endividamento médio do domicílio americano ficará negativo. Dada a pequena riqueza líquida e os bens em 401k [fundos de investimento voltados para aposentadorias], a maioria dos domicílios não terá qualquer renda extra. Pela lei atual o déficit dos domicílios pode levar a um repúdio maciço das dívidas, em vez do pagamento delas, o que poderia causar novas perdas de casas, deprimindo ainda mais o mercado imobiliário. Porque boa parte da classe média americana terá sua renda pessoal dizimada, isso pode levar a crise política e social. Tal crise poderia se materializar em breve e mais abruptamente do que Washington espera. O ódio populista sentido depois que se soube que a seguradora AIG [que recebeu ajuda com dinheiro público, depois de falir] estava pagando bônus a seus executivos pode ser brincadeira em comparação com o que nos espera.
Publicado por Ricardo Peres em 13/agosto/2009 as 10:43
Comentários