Cápsula de Cultura: O ABC da Crise
Dica de leitura
Diante da recessãoMuito se tem dito e escrito, quase uma pletora de textos e discursos sobre a crise da economia mundial tem saído por todos os canais da mídia e do movimento editorial nos últimos meses. Nenhuma comparação foi feita com os escritos nos anos 1930, mas duvido que metade de tal soma de descrições, apreciações e prognósticos tenha sido feita durante a grande crise daqueles anos.
E entretanto, no meio dessa demasia, pode-se recomendar, sem receio de ilusão por facciosismo, a coletânea de textos editados pela Fundação Perseu Abramo sob o título de O ABC da Crise. Para os brasileiros, poderíamos indicar como leitura obrigatória para todos os que buscam o difícil entendimento desses fenômenos econômico-político-sociais que escapam a qualquer enquadramento em equações do tipo das que tratam das ciências exatas, na medida em que são fortemente influenciados por fatores humanos, políticos e psicológicos.
Trata-se de um substancial conjunto de artigos, em linguagem de fácil apreensão, que se abre com o mais extenso, descritivo e didático de todos, o de Jefferson José da Conceição, que aliás dá título ao livro, como se pudesse resumi-lo na sua riqueza descritiva de causas e etapas, e da cronologia dos fatos caracterizadores da crise. E logo neste primeiro capítulo o autor antecipa uma visão de todos os outros, chamando atenção sobre o caráter subjetivo e político não só da crise, mas de toda a chamada ciência econômica que os teóricos do neoliberalismo queriam tanto que fosse uma ciência exata, tentando desmoralizar o velho conceito de “economia política”, vigente por dezenas de décadas anteriores.
Tentativas de previsão de desdobramentos, difícil como todos reconhecem, e especialmente propostas de políticas de enfrentamento da crise são feitas ao longo de todos os textos. Vale ressaltar a oportuna proposta de Sérgio Sister, que não é político mas jornalista com sensibilidade de artista que também é, sugerindo a articulação política de um “acordo-ponte”, envolvendo governo, trabalhadores e empresas, com uma participação especial do BNDES, visando à retomada do dinamismo econômico, com o mínimo prejuízo para o elo mais fraco da cadeia produtiva que á o do trabalhador. Cabe observar que este acordo sugerido por Sister vem sendo tecido em vários setores do dia-a-dia da política brasileira, informal mas eficientemente, sob a liderança do mais respeitado e competente negociador que a sociedade brasileira revelou nos últimos tempos, que é o próprio Presidente Lula. Curiosa, e digna de uma referência entre parênteses, é a citação, feita pelo autor, da expressão “risco sistêmico”, em nome do qual tantos bilhões foram gastos em passado recente mas que não chegou a ser invocada no presente, quando o nosso sistema bancário se mostrou sólido diante da crise, comandado pela excelência dos bancos públicos que quase foram privatizados pelos neoliberais.
Bancos públicos são instituições mencionadas em quase todos ao artigos, pela relevância das funções que exercem, especialmente decisivas na conjuntura da crise.
Maria da Conceição Tavares fala sobre a importância deles no fecho do seu curto e denso artigo, no qual aponta com clareza a variável política da crise, salientando que o governo de Washington sabia muito bem da dimensão de gravidade da situação do sistema financeiro com bastante antecedência e relaxou nas providências por uma razão eminentemente ideológica: os responsáveis pelas políticas do setor são “gente de Wall Street, escolhidos entre os piranhões do mercado”.
Paul Krugman, no primeiro dos seus quatro artigos, reforça essa convicção de Maria da Conceição, mostrando a forte ampliação das operações “subprime”, que dobraram entre 2003 e 2006, quando já se sabia da gravidade da bolha imobiliária americana. Por quê?, pergunta, para responder ele mesmo: por ideologia.
A falência dos controles das sociedades nacionais sobre as respectivas economias, nos vetores da produção real e do sistema financeiro, em decorrência da globalização absolutamente hegemônica desses sistemas no interesse do capital, é outro conjunto de ocorrências referido como causa direta primordial da crise ao longo dos textos do “abc da crise”. Particularmente clarificador neste item é o artigo de Paul Singer. E também ele invoca a participação efetiva dos bancos públicos na estratégia de inversão da tendência depressiva causada pelo entupimento do crédito (causa imediata, segundo Maria da Conceição) antes que a economia real entre no nível de colapso a que chegou nos anos trinta.
No terceiro dos seus artigos, Paul Krugman fala sobre a Economia da Depressão, que também na sua opinião ainda não chegou até agora no nível que atingiu nos anos trinta. Quando chega essa Economia, sustenta Krugman, não prevalecem as regras e preceitos habituais, e acrescenta o que acontece: ”virtude vira vício, cautela é arriscada e prudência é loucura”.
Há um texto que se diferencia no conjunto do livro, por uma visão que não atribui ao sistema financeiro a responsabilidade maior pela crise atual: é o de Chico Oliveira, que enxerga uma crise global, globalizada, do capital, uma crise de realização de valor, como todas as outras crises do capitalismo, vinda, esta atual, da incorporação, quase súbita, de cerca de um bilhão de trabalhadores chineses e indianos no mercado mundial de trabalho. A derrocada do sistema financeiro é tão-somente a manifestação mais evidente desta crise do capital. Não é de modo algum uma visão contraditória à dos demais artigos, mas uma variante de perspectiva profundamente fecunda. E Guido Mantega, bem adiante, na sua entrevista, segue uma linha paralela, vendo a crise como resultante de desequilíbrios do capital que se vinham acumulando no mundo desde há muito. Chico Oliveira impressiona também no receituário brasileiro para a crise, preconizando a revivescência de Vargas, nosso maior estadista, com uma política de criação de pelo menos cinco “Embraers” por ano.
A corrida competitiva, a obrigatoriedade do esforço desta corrida que tantas vezes assume formas verdadeiramente insanas é a regra de ouro do paradigma capitalista, como lembra Gonzaga Belluzzo no seu primeiro artigo, relatando vários episódios exemplares da imprudência decorrente desta regra, e terminando, ele também, com uma previsão do necessário comando do Estado sobre o sistema financeiro. No seu terceiro artigo volta ao tema da religião darwinista do mercado, o Moloch insaciável do neoliberalismo que excomunga furiosamente todo e qualquer desvio construído pela política, pelos políticos, em busca do humanismo, sempre chamado de populismo pelos graves senhores liberais.
Esses graves senhores liberais são objeto da ironia de Ricardo Berzoini no seu artigo em que faz o paralelo entre a fictícia condição de um filme em que a gente grande do Norte que pede abrigo ao Sul numa nova era glacial e a situação, não tão irreal, em que hoje se encontram, os no Norte, contando com os países emergentes para saírem da grave complicação financeira em que se meteram para favorecer sempre o seu senhor, o capital.
Os bancos públicos são também ressaltados por Cézar Manoel de Medeiros, com a estratégica missão que lhes é atribuída de induzir todo o sistema financeiro ao cumprimento das políticas de desenvolvimento traçadas politicamente pela sociedade através do Estado. Seu texto mostra a importância dos bancos públicos brasileiros e sugere também uma destacada inovação a considerar: a criação de uma Empresa Nacional da Ativos, vinculada ao Tesouro, com a capacidade reforçada para alavancar crescentemente reservas em montante suficiente para a realização dos investimentos prioritários para a Nação, como, por exemplo, os da exploração do pré-sal. Pode-se acrescentar outro exemplo: a preservação da Amazônia.
Em termos de proposições inovadoras, Marcio Pochmann vai mais fundo ainda, reclamando uma nova Agenda Civilizatória, a ser posta em marcha através de uma engenharia política que revolva o fundo das estruturas de poder para implantar uma redemocratização verdadeiramente fundamental, com um novo tipo de Estado onde os fundos públicos, arrecadados via tributação fortemente progressiva, representem mais de dois terços do excedente econômico. Um quase-socialismo, onde a jornada de trabalho também seria reformulada.
Carlos Eduardo Carvalho, finalmente, traça a evolução da idéia neoliberal, desde as históricas posições originais de Hayek e Friedman, baseadas nas virtudes do mercado livre de interferências do Estado para produzir crescimento e distribuição, até as últimas posições, eminentemente pragmáticas, que vão muito além das tradicionais políticas monetárias, fiscais, cambiais e privatistas até atingir um novo paradigma definido por cinco pontos essenciais que ele nos apresenta em lista.
A variedade de perspectivas e a força das fundamentações apresentadas fazem da substância do “abc da crise” uma fonte de clareza inestimável para a compreensão dos vários aspectos e fatores da crise e das políticas e medidas mais justas e eficazes para o seu enfrentamento. O papel do Estado e especialmente dos bancos públicos é um destaque no debate dos caminhos de saída e de prevenção de novas crises. Vale bem parabenizar os autores e a Fundação Perseu Abramo, que os reuniu neste compêndio tão oportunamente oferecido aos brasileiros.
*Roberto Saturnino Braga, 77, engenheiro. Foi deputado federal, prefeito e vereador da cidade do Rio de janeiro e senador da República. Atualmente compõe o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.
E entretanto, no meio dessa demasia, pode-se recomendar, sem receio de ilusão por facciosismo, a coletânea de textos editados pela Fundação Perseu Abramo sob o título de O ABC da Crise. Para os brasileiros, poderíamos indicar como leitura obrigatória para todos os que buscam o difícil entendimento desses fenômenos econômico-político-sociais que escapam a qualquer enquadramento em equações do tipo das que tratam das ciências exatas, na medida em que são fortemente influenciados por fatores humanos, políticos e psicológicos.
Trata-se de um substancial conjunto de artigos, em linguagem de fácil apreensão, que se abre com o mais extenso, descritivo e didático de todos, o de Jefferson José da Conceição, que aliás dá título ao livro, como se pudesse resumi-lo na sua riqueza descritiva de causas e etapas, e da cronologia dos fatos caracterizadores da crise. E logo neste primeiro capítulo o autor antecipa uma visão de todos os outros, chamando atenção sobre o caráter subjetivo e político não só da crise, mas de toda a chamada ciência econômica que os teóricos do neoliberalismo queriam tanto que fosse uma ciência exata, tentando desmoralizar o velho conceito de “economia política”, vigente por dezenas de décadas anteriores.
Tentativas de previsão de desdobramentos, difícil como todos reconhecem, e especialmente propostas de políticas de enfrentamento da crise são feitas ao longo de todos os textos. Vale ressaltar a oportuna proposta de Sérgio Sister, que não é político mas jornalista com sensibilidade de artista que também é, sugerindo a articulação política de um “acordo-ponte”, envolvendo governo, trabalhadores e empresas, com uma participação especial do BNDES, visando à retomada do dinamismo econômico, com o mínimo prejuízo para o elo mais fraco da cadeia produtiva que á o do trabalhador. Cabe observar que este acordo sugerido por Sister vem sendo tecido em vários setores do dia-a-dia da política brasileira, informal mas eficientemente, sob a liderança do mais respeitado e competente negociador que a sociedade brasileira revelou nos últimos tempos, que é o próprio Presidente Lula. Curiosa, e digna de uma referência entre parênteses, é a citação, feita pelo autor, da expressão “risco sistêmico”, em nome do qual tantos bilhões foram gastos em passado recente mas que não chegou a ser invocada no presente, quando o nosso sistema bancário se mostrou sólido diante da crise, comandado pela excelência dos bancos públicos que quase foram privatizados pelos neoliberais.
Bancos públicos são instituições mencionadas em quase todos ao artigos, pela relevância das funções que exercem, especialmente decisivas na conjuntura da crise.
Maria da Conceição Tavares fala sobre a importância deles no fecho do seu curto e denso artigo, no qual aponta com clareza a variável política da crise, salientando que o governo de Washington sabia muito bem da dimensão de gravidade da situação do sistema financeiro com bastante antecedência e relaxou nas providências por uma razão eminentemente ideológica: os responsáveis pelas políticas do setor são “gente de Wall Street, escolhidos entre os piranhões do mercado”.
Paul Krugman, no primeiro dos seus quatro artigos, reforça essa convicção de Maria da Conceição, mostrando a forte ampliação das operações “subprime”, que dobraram entre 2003 e 2006, quando já se sabia da gravidade da bolha imobiliária americana. Por quê?, pergunta, para responder ele mesmo: por ideologia.
A falência dos controles das sociedades nacionais sobre as respectivas economias, nos vetores da produção real e do sistema financeiro, em decorrência da globalização absolutamente hegemônica desses sistemas no interesse do capital, é outro conjunto de ocorrências referido como causa direta primordial da crise ao longo dos textos do “abc da crise”. Particularmente clarificador neste item é o artigo de Paul Singer. E também ele invoca a participação efetiva dos bancos públicos na estratégia de inversão da tendência depressiva causada pelo entupimento do crédito (causa imediata, segundo Maria da Conceição) antes que a economia real entre no nível de colapso a que chegou nos anos trinta.
No terceiro dos seus artigos, Paul Krugman fala sobre a Economia da Depressão, que também na sua opinião ainda não chegou até agora no nível que atingiu nos anos trinta. Quando chega essa Economia, sustenta Krugman, não prevalecem as regras e preceitos habituais, e acrescenta o que acontece: ”virtude vira vício, cautela é arriscada e prudência é loucura”.
Há um texto que se diferencia no conjunto do livro, por uma visão que não atribui ao sistema financeiro a responsabilidade maior pela crise atual: é o de Chico Oliveira, que enxerga uma crise global, globalizada, do capital, uma crise de realização de valor, como todas as outras crises do capitalismo, vinda, esta atual, da incorporação, quase súbita, de cerca de um bilhão de trabalhadores chineses e indianos no mercado mundial de trabalho. A derrocada do sistema financeiro é tão-somente a manifestação mais evidente desta crise do capital. Não é de modo algum uma visão contraditória à dos demais artigos, mas uma variante de perspectiva profundamente fecunda. E Guido Mantega, bem adiante, na sua entrevista, segue uma linha paralela, vendo a crise como resultante de desequilíbrios do capital que se vinham acumulando no mundo desde há muito. Chico Oliveira impressiona também no receituário brasileiro para a crise, preconizando a revivescência de Vargas, nosso maior estadista, com uma política de criação de pelo menos cinco “Embraers” por ano.
A corrida competitiva, a obrigatoriedade do esforço desta corrida que tantas vezes assume formas verdadeiramente insanas é a regra de ouro do paradigma capitalista, como lembra Gonzaga Belluzzo no seu primeiro artigo, relatando vários episódios exemplares da imprudência decorrente desta regra, e terminando, ele também, com uma previsão do necessário comando do Estado sobre o sistema financeiro. No seu terceiro artigo volta ao tema da religião darwinista do mercado, o Moloch insaciável do neoliberalismo que excomunga furiosamente todo e qualquer desvio construído pela política, pelos políticos, em busca do humanismo, sempre chamado de populismo pelos graves senhores liberais.
Esses graves senhores liberais são objeto da ironia de Ricardo Berzoini no seu artigo em que faz o paralelo entre a fictícia condição de um filme em que a gente grande do Norte que pede abrigo ao Sul numa nova era glacial e a situação, não tão irreal, em que hoje se encontram, os no Norte, contando com os países emergentes para saírem da grave complicação financeira em que se meteram para favorecer sempre o seu senhor, o capital.
Os bancos públicos são também ressaltados por Cézar Manoel de Medeiros, com a estratégica missão que lhes é atribuída de induzir todo o sistema financeiro ao cumprimento das políticas de desenvolvimento traçadas politicamente pela sociedade através do Estado. Seu texto mostra a importância dos bancos públicos brasileiros e sugere também uma destacada inovação a considerar: a criação de uma Empresa Nacional da Ativos, vinculada ao Tesouro, com a capacidade reforçada para alavancar crescentemente reservas em montante suficiente para a realização dos investimentos prioritários para a Nação, como, por exemplo, os da exploração do pré-sal. Pode-se acrescentar outro exemplo: a preservação da Amazônia.
Em termos de proposições inovadoras, Marcio Pochmann vai mais fundo ainda, reclamando uma nova Agenda Civilizatória, a ser posta em marcha através de uma engenharia política que revolva o fundo das estruturas de poder para implantar uma redemocratização verdadeiramente fundamental, com um novo tipo de Estado onde os fundos públicos, arrecadados via tributação fortemente progressiva, representem mais de dois terços do excedente econômico. Um quase-socialismo, onde a jornada de trabalho também seria reformulada.
Carlos Eduardo Carvalho, finalmente, traça a evolução da idéia neoliberal, desde as históricas posições originais de Hayek e Friedman, baseadas nas virtudes do mercado livre de interferências do Estado para produzir crescimento e distribuição, até as últimas posições, eminentemente pragmáticas, que vão muito além das tradicionais políticas monetárias, fiscais, cambiais e privatistas até atingir um novo paradigma definido por cinco pontos essenciais que ele nos apresenta em lista.
A variedade de perspectivas e a força das fundamentações apresentadas fazem da substância do “abc da crise” uma fonte de clareza inestimável para a compreensão dos vários aspectos e fatores da crise e das políticas e medidas mais justas e eficazes para o seu enfrentamento. O papel do Estado e especialmente dos bancos públicos é um destaque no debate dos caminhos de saída e de prevenção de novas crises. Vale bem parabenizar os autores e a Fundação Perseu Abramo, que os reuniu neste compêndio tão oportunamente oferecido aos brasileiros.
*Roberto Saturnino Braga, 77, engenheiro. Foi deputado federal, prefeito e vereador da cidade do Rio de janeiro e senador da República. Atualmente compõe o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo.
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Comentários: Não altera em nada a ordem natural das coisas, mas, enfim, não custa endossar as palavras (arrazoadas, diga-se) do respeitado conselheiro da também respeitada Fundação Perseu Abramo. Assim pensa (?) o Clipping do Tato
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