Um olhar no retrovisor da história recente:

Onde foi que eu errei?

Novo Conservadorismo

Século 21 será obrigado a conviver com personagens políticos dignos do século 19

Como dizia o velho Marx, os fatos importantes da história sempre ocorrem duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. Se tivermos sorte e se Marx ainda servir para previsões, o ano de 2001 entrará para a história apenas como o início de uma farsa. Se tivermos azar, talvez 2001 será visto como o começo de uma nova tragédia.

Uma coisa é certa: 2001 terá um lugar especial na história, entre outras coisas, graças ao retorno improvável do conservadorismo. Neste sentido, ele parece querer reeditar o início dos já longínquos anos 80 com sua orientação político-econômica capitaneada por Reagan-Thatcher, o casal 20 do liberalismo. Mas, se os anos 80 sobreviveram alimentados pela euforia dos yuppies dançando ao som do mais doce tabu de Sade e do escravo do amor de Brian Ferry, o ano 2001 não tem muito de onde tirar seu capital de euforia, até porque o mundo parece teimar em querer acionar o sinal vermelho da recessão. Até bem pouco tempo, tínhamos os arautos da nova economia ouvindo em volume máximo as pregações de Moby sobre as maravilhas do advento de um mundo sem fronteiras. Isso até descobrirmos que o caminho à terra prometida teria algumas guerras contra o terrorismo pela frente e, que até lá, os índices do Nasdaq continuariam a cair.

Mesmo sem euforia, o mundo assistiu à volta do conservadorismo sob a batuta de personagens do calibre de Bush Júnior, Silvio Berlusconi, Ariel Sharon e, por que não, Jörg Haider. Cada um tem sua história e sua peculiaridade regional. Um faz o papel do empresário bem-sucedido que se insurge contra a histeria de juízes que atrapalham a vida do povo com denúncias de corrupção. O outro é a encarnação do bom senso do homem comum do interior caipira. O terceiro se vê como o anjo da guerra que vai conseguir aprisionar um povo de terroristas em Bantustãs. O último gostaria de ser visto como o executivo que não perdeu o orgulho dos bons costumes da sua boa cidadezinha fascista prestes a ser invadida por uma horda de turcos. Todos são, de uma forma ou de outra, figuras de proa neste retorno ao conservadorismo.

A primeira pergunta que vale a pena colocar é: como eles chegaram aí? Afinal, há bem pouco tempo, gente como Berlusconi e Sharon não tinham o menor prestígio político. Mas algo aconteceu, ou melhor, algo não aconteceu, já que todos eles podem ser vistos como sintomas de mais um fracasso da esquerda (ou de qualquer coisa que, na falta, ocupa o lugar da esquerda).


OPORTUNIDADE PERDIDA

Em meados dos anos 90, quase toda a Europa Ocidental era governada por sociais-democratas, os Estados Unidos tinham um governo democrata (que, como estamos vendo, não tem nem metade do poder de estrago de um republicano) e Israel era governado pelos trabalhistas. Por mais que este retrato de família seja um pouco forçado, é inegável que esta coincidência indicava uma oportunidade na qual uma certa "força progressista" poderia recolocar em pauta outros procedimentos políticos e práticas sócio-econômicas distintas daquelas adotadas pelo ultraliberalismo dos anos 80, que parecia chegar ao seu esgotamento. Vale a pena lembrar, por exemplo, que Clinton (quem diria) foi eleito pela primeira vez com a promessa de criar um verdadeiro sistema público de saúde nos EUA e que Jospin não tinha medo de se apresentar na sua campanha eleitoral como um "verdadeiro" socialista disposto a resgatar o compromisso histórico da esquerda com a distribuição de renda e com o aprofundamento de práticas participativas de gestão pública.

O que aconteceu foi outra coisa. O que um dia foi a social-democracia européia transformou-se no partido das desregulamentações e ajustes econômicos próprios à direita. Isso a ponto da revista The Economist exortar os seus leitores da City, na última eleição para o parlamento britânico, a votar no melhor candidato conservador do páreo, ou seja, Tony Blair. Aqueles que não assumiram totalmente este papel de "novo centro", como gosta de dizer o chanceler alemão Gerhard Schroeder, acabaram apenas reduzindo a esquerda a um discurso da conservação. O melhor exemplo é o governo do primeiro-ministro francês Lionel Jospin, incapaz de reinventar pautas sócio-econômicas e prisioneiro de certos setores da sociedade civil amedrontados pela necessidade de se reinventar.

Foi este impasse da esquerda que permitiu o aparecimento do novo conservadorismo. De fato, a esquerda acabou colaborando com um processo de esvaziamento da política, ao reduzir ao mínimo suas diferenças com o discurso conservador ou a assumir a retórica da conservação (que a desqualifica como arcaica).


CRIMINALIZAR A OPOSIÇÃO

Se há uma característica geral deste novo conservadorismo, é a articulação de truculência política, vinda diretamente de uma lógica de guerra fria, com discursos de modernização social e econômica.

Neste sentido, o troféu da truculência política vai mesmo para Ariel Sharon: o homem que conseguiu enterrar de uma vez por todas o que restava dos acordos de Oslo. Sua lógica é clara: para ele, nunca haverá paz enquanto uma maioria de palestinos estiverem ocupando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Suas ações são embaladas pela tentativa de criminalizar a oposição palestina e de humilhar continuamente um povo reduzido à condição de massa de refugiados. Verdade seja dita, Sharon conseguiu transformar, de uma vez por todas, o Estado de Israel em um estado fora da Lei, que assassina sistematicamente líderes palestinos suspeitos de encabeçar ações armadas e que, sem mais nem menos, ignora a Lei representada pelas resoluções da ONU sobre o Estado Palestino.

É claro que há sempre aqueles que tentam culpar os invadidos, lembrando que Arafat recusou as propostas de Barak que consistiam, entre outras coisas, em cessão de 90% dos territórios ocupados, partilha de Jerusalém e fim do direito de retorno aos refugiados palestinos. Talvez nem valha a pena lembrar que falar em fim de direito de retorno é, no mínimo, obsceno. Por uma razão estritamente semelhante, a OTAN invadiu a Iugoslávia e assegurou o retorno dos albaneses ao Kosovo. Ou seja, dois pesos, duas medidas. Quanto à questão dos 90%, como escreveu o historiador israelense Shlomo Sand (Le Monde, 5 de janeiro de 2002), isto significa dizer que: "o prisioneiro se beneficia de uma autonomia de 90% sobre o território de sua cela".

De fato, o caso de Israel é exemplar nesta perda de rumo de forças normalmente à esquerda (leia-se Partido Trabalhista). Sharon faz o seu papel de direita nacionalista e messiânica. Mas o papel de caução a que se presta o Partido Trabalhista é realmente desolador e indica o esgotamento de seu compromisso histórico.

Mas se esta é a truculência política, onde está o discurso de modernização social utilizado pelo novo conservadorismo? Ele está em teóricos da administração Bush Júnior, como Samuel Huntington e o já bem conhecido da platéia Francis Fukuyama.

O caso de Bush Júnior é realmente uma pérola. Até 11 de setembro, ele tinha tudo para encabeçar a presidência mais desastrada da história recente dos Estados Unidos. Como se não bastasse ter ganho uma eleição com minoria de votos e com graves suspeitas de fraude no estado governado, é claro, pelo seu irmão Jeff, ele conseguiu perder a maioria republicana no Senado em menos de seis meses graças a uma política de irresponsabilidade social que assustou até membros de seu partido. Enquanto ele se ocupava da sua única promessa de campanha, lutar para abaixar os impostos dos mais ricos e, com isso, acabar com o dinheiro para programas sociais, os Estados Unidos perderam sua vaga na Comissão de Direitos Humanos da ONU e brigaram com seus aliados europeus devido ao abandono do Protocolo de Kyoto e dos acordos anti-nucleares com a Rússia. Tudo isso em menos de oito meses.

Então vieram os atentados do 11 de setembro que o salvaram politicamente. Uma oportunidade imperdível que Bush Júnior promete não largar. "2002 será também um ano de guerra", disse o presidente norte-americano, talvez contra o Iraque, o Sudão, a Somália. Júnior ainda vai decidir. "Alguma coisa precisava ser feita", dizem em coro os bem-aventurados. Mas ninguém explicou por que esta "alguma coisa" deveria ser necessariamente uma guerra contínua. Se Bush quisesse realmente acabar com o terrorismo, ele estaria usando a influência norte-americana para desarmar o conflito entre Israel e Palestina (o que até Bush Pai sabia ao pressionar Shamir a abrir negociações com a OLP).

Mas ele precisa do terrorismo para justificar suas ações como, por exemplo, restrições de direitos civis. Uma prática que já vinha de Clinton. Após o atentado de Oklahoma, Bill conseguiu passar uma lei no congresso que permite ao secretário de justiça utilizar as Forças Armadas contra a população civil. O habeas corpus pode ser suspenso.

Para justificar tal luta contínua contra o terrorismo, os teóricos do Departamento de Estado norte-americano inventaram o conflito de civilizações. Ele consiste em afirmar que todas as ações contra o mundo livre visam solapar nossa civilização laica, democrática e fundada na liberdade ao indivíduo. Um pouco como se estivéssemos reeditando a luta das Luzes contra a superstição.

Neste ponto, valeria a pena perguntar como os árabes percebem a civilização ocidental. Lembremo-nos que é exatamente o Ocidente que sustenta alguns dos regimes mais corruptos e autoritários da região. Basta citarmos aqui Arábia Saudita, Tunísia e Emirados Árabes Unidos. Lembremo-nos também que, durante anos, o Ocidente lutou para desestabilizar toda oposição árabe laica e comprometida com o mínimo de distribuição de renda: Ben Bela (Argélia), Nasser (Egito), Mossadeq (Irã).

Convenhamos que esta não é uma boa forma de mostrar a "superioridade da civilização ocidental". E, se houver uma cristalização dos partidos fundamentalistas, o Ocidente tem sua parte enorme de responsabilidade. Mas, sobre isso, o novo conservadorismo não quer nem ouvir falar.

Vladimir Safatle *
Especial para o Correio
* Vladimir Pinheiro Safatle possui graduação em filosofia pela Universidade de São Paulo (1994), graduação em Comunicação social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (1994), mestrado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1997) e doutorado em Lieux et transformations de la philosophie - Université de Paris VIII (2002). Atualmente é professor doutor do departamento de filosofia da Universidade de São Paulo. Foi professor visitante das Universidades de Paris VII e Paris VIII, além de responsável de seminário no Collège International de Philosophie (Paris). Desenvolve pesquisas nas áreas de: epistemologia da psicanálise, desdobramentos da tradição dialética hegeliana na filosofia do século XX e filosofia da música. É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy.

Daí a pergunta: O que muda na mudança, se esse mundo é uma dança?

Eis a resposta: Só o que não muda é aquilo a que está destinado todo império, toda potência, toda prepotência: o declínio, a impotência, a queda.

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