Um futuro sem trabalho
Trabalho, saúde, ambiente, cognição e sustentabilidades
Work, health, environment, cognition and sustainabilities
Marli B. M. de Albuquerque Navarro "
Núcleo de Biossegurança, FIOCRUZ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil
Resumo
O artigo discute o mundo do trabalho no contexto do projeto tecnológico das sociedades industriais que se revela também como agressivo e destrutivo, gerador de aprofundamentos de sérias problemáticas sociais e ambientais, tais como o desemprego, a degradação do trabalho, a violência, a devastação do meio ambiente, a propagação acelerada de doenças, projetando como urgência a necessidade da reestruturação produtiva como forma de atenuar os efeitos negativos da era tecnológica e os paradoxos contidos na chamada globalização, enfocando a questão da construção das sustentabilidades, destacando os processos cognitivos voltados para formulação de projetos sustentáveis que tendem a construir com mais facilidade a integração entre objetividade e subjetividade, conformando uma ética capaz de tornar-se inerente ao cotidiano das ações humanas frente à natureza, em especial, quando da intervenção produtiva.
Palavras-chave: sustentabilidade; ambiente; saúde do trabalhador, processos cognitivos, globalização.
Abstract
The paper debates the world of labour within the context of industrial societies technologic project, also unveiling an aggressive and destructive face, and generator of deep social and environmental problems such as increase jobless rates, work deterioration natural debasement and fast disease spreading. An urgent project is foreseen as the need to enhance productive rebuilding to lessen technologic era negative effects and globalization paradoxes. In order to raise sustain abilities focusing on cognitive processes aimed at sustainable development projects that dispose to ease the interaction between objectivity and subjectivity, an ethics able to integrate human actions facing nature is needed with regard to productive interference.
Key-Words: sustainability; environment; occupational heath; cognitive processes; globalization.
A preocupação ambiental ampliou a reflexão sobre a complexidade dos sistemas vivos, abrindo também importantes possibilidades de análises relativas ao mundo da produção do trabalho humano, atribuindo valor ao homem e a natureza como integrantes de interdependências. Parte importante desse contexto analítico redimensiona a percepção humana e sua cognição frente ao mundo produtivo na perspectiva da sustentabilidade. Como eixo cognitivo, a sustentabilidade requer uma dimensão perceptiva humana que se traduza como orgânica, holística e participativa, em oposição à percepção meramente tecnocêntrica, reducionista e autoritária que tende a não relacionar valores e fatos correspondentes entre homem e natureza, utilizando-se de uma ética desvinculada das práticas cotidianas em nome da objetividade. Processos cognitivos voltados para a formulação de projetos sustentáveis tendem a construir com mais facilidade a integração entre objetividade e subjetividade, conformando uma ética capaz de tornar-se inerente ao cotidiano das ações, entendendo que homem e natureza não estão dissociados, favorecendo uma relação sinérgica entre ambos, contribuindo para a construção de noções, percepções e conhecimentos complexos, minimizando a importância de enfoques voltados para estabelecer relações entre causa e efeito, em especial para o estabelecimento de critérios direcionados para avaliar a qualidade das inter-relações entre sistemas ambientais e sistemas sociais, onde, o fator da qualidade da vida torna-se mais enfático como valor inerente a sustentabilidade.
Um importante parâmetro para a construção da qualidade de vida, está na inserção do homem na atividade produtiva. No que diz respeito especificamente a este contexto, a busca da sustentabilidade evoca motivações essenciais, tais como, a ênfase na cooperação, na descentralização do poder, no limite e nas opções tecnológicas, como meios para alargar o valor humano no processo produtivo, considerando, por exemplo, trabalho, lazer, e cultura como complementares, estabelecendo novas cognições sobre o que é o ato de produzir a partir da autoprodução.
É preciso ainda salientar que o trabalho compõe a formação da personalidade, da construção da auto-imagem e parte significativa da identidade dos homens, sendo, pois, uma importante fonte de satisfação simbólica e emocional e não apenas fonte de satisfação patrimonial. A organização do trabalho exerce sobre o homem, uma ação específica, cujo impacto é o aparelho psíquico. Em certas condições, emerge um sofrimento que pode ser atribuído ao choque entre uma história individual, portadora de projetos, de esperanças e de desejos, e uma organização do trabalho que os ignora. Esse sofrimento, de natureza mental, começa quando o homem, no trabalho, já não pode fazer nenhuma modificação na sua tarefa no sentido de torná-la mais conforme as suas necessidades fisiológicas e a seus desejos psicológicos – isso é, quando a relação homem-trabalho é bloqueada (Dejours, 1987). Assim, para além dos riscos à saúde relacionados com os fatores ambientais que se apresentam nos locais e na natureza do trabalho, os fatores psicossociais devem ser contextualizados nas análises que visam à construção de ambientes saudáveis, visto que estes, são potencialmente comprometedores do bem-estar, embora não estejam manifestados em lei como risco ambiental, mas que podem desencadear importantes desconfortos e danos à saúde dos trabalhadores.
Pensadores contemporâneos que refletem sobre a temática que associam o trabalho, a criatividade, a qualidade de vida e a essência humana, tendem para as análises que contextualizam o trabalho como parte da construção da identidade social e do processo de desenvolvimento pessoal, livre, portanto das lógicas alienantes, mecânicas e compulsivas. O exercício do trabalho deve estar situado no campo da criatividade, que só se realiza com múltiplas relações, dentro e fora do ambiente de trabalho. Cumpre tornar a dar ao trabalho, achincalhado pelas novas exigências do capitalismo, seu ‘lugar central' e procurar as vias de um trabalho ‘expressivo', ‘libertador' que deixe tempo para viver, que permita o emprego do reconhecimento e da engenhosidade (De Bandt et al. , 1995).
A proposta do avanço das reflexões sobre o ócio criativo como uma estratégia para novas adequações entre o trabalho e as demandas da sociedade pós- industrial está ancorada na idéia base de que o ócio criativo deve ser entendido como uma prática que induz a formulação de idéias, alarga o aprendizado e aperfeiçoa o desempenho do trabalho, contribuindo para a ampliação do valor da plenitude humana. Esta, aliás, faz com que as atividades do trabalho se agreguem as tantas outras necessárias ao sentimento de integralidade humana, tais como: o estudo como base do saber; a diversão, como base da alegria; o sexo, como elemento do prazer; a existência em família, como essência da solidariedade, etc (De Masi, 2004).
A perspectiva da possibilidade concreta da ampliação do tempo de lazer e da diminuição das situações de stress nas relações de trabalho não podem ser simplificadas pela operacionalização da produção através apenas da novidade do tele-trabalho, pois este serve para economizar tempo, dinheiro e estresse, sem assegurar a criatividade (De Masi, 2004). Para retirar suas reflexões do campo da utopia, De Masi, busca o exemplo de Oscar Niemeyer, um profissional que alcançou o mais alto patamar do reconhecimento e do sucesso, possuindo todos os requisitos para valorizar o poder e todas as demais ambições materiais, contudo, nas palavras de Niemeyer, "o que conta não é a arquitetura mas os amigos, a vida e este mundo injusto que devemos modificar", dando a sua vida, onde o sucesso do trabalho se inclui, a dimensão da plenitude, que reflete sobre o que ele cria através da arquitetura, socializando uma estética que traduz seus sentimentos do mundo e das coisas. As proposições motivadas pelas necessidades apontadas pelas novas urgências do mundo do trabalho na sociedade pós-industrial, não acalentam a ilusão da humanização do capitalismo, posto que, o capitalismo está estruturado sobre as bases da competitividade, do individualismo, do egoísmo, da ambição, da privatização, que são premissas que indicam relações brutais, perversas e agressivas para o homem e para a natureza, sendo, portanto, impossível humanizá-lo. O capitalismo desnatura o homem e desumaniza a natureza.
Embora possamos considerar os contextos desses debates mais vigentes nos países desenvolvidos, os países em desenvolvimento já lidam com as problemáticas relativas às alterações na organização do trabalho, em especial das atividades que requerem maiores qualificações, inserindo na brecha do trabalho criativo, o discurso e as justificativas da terceirização. A abordagem dos fenômenos recentes que pretendem discutir a revalorização do mundo do trabalho apresenta questões complexas. A elaboração dos discursos favoráveis à idéia da diminuição da carga física e emocional do trabalho, abre debates sobre a real possibilidade do aumento do tempo de lazer e da criatividade como fatores que podem representar uma economia real dos gastos do Estado e das empresas com os custos relativos à saúde dos trabalhadores. Aquela limitação acarretaria também a redução de indenizações, da utilização dos mecanismos previdenciários, especialmente, com as demandas para os programas de saúde mental voltados para o atendimento a trabalhadores dos mais variados setores. Podemos citar, por exemplo, desde os trabalhadores que lidam com grandes situações provocadoras de stress (ruídos, poluição, concentração de pessoas, violência e outros riscos manifestos ou potenciais, presentes no cotidiano do exercício do trabalho), até aqueles profissionais responsáveis por atividades mais intelectuais, que também sofrem pressões relativas à competitividade institucional e pessoal que geralmente ameaçam a credibilidade de carreiras e de inserção no cotidiano das equipes, diminuindo a importância do trabalho das pessoas que manifestam limitações de ordem técnica, de ordem política ou até mesmo pessoas que acentuam um biorritmo que difere da maioria, podendo ser consideradas pessoas inapropriadas para o desempenho de responsabilidades inerentes ao trabalho. Outros fatores de stress mais concretos como os de risco contribuem ainda para configurar problemas que caracterizam o domínio da interferência e das propostas cognitivas situadas no âmbito da saúde dos trabalhadores.
Apesar de nos parecer distante o debate sobre a motivação produtiva, baseada no tempo livre para usufruir o ócio criativo, algumas empresas e instituições já praticam a pausa para despertar o potencial criativo e a diminuição do stress , bem como de sofrimentos causados pelas doenças psicossomáticas, tais como problemas na pele, estômago, dores de cabeça e a doença do século, a depressão, através de programas que objetivam a substituição dos consultórios médicos, pela prática de esportes, exercícios de relaxamento e outros lazeres saudáveis e coletivos, que atenuam também desconfortos causados pelas doenças ergonômicas. Cabe abrir um parêntese para mencionar que as promessas crescentes dos processos biotecnológicos em curso, sublinham como perspectiva de um futuro próximo, as possibilidades da nanotecnologia. Esta seria capaz de oferecer alternativas para a fome, para as doenças, para a velhice, favorecendo o aumento substancial da expectativa de vida dos homens e o aumento do tempo produtivo relativo ao mundo do trabalho, o que favorece as formulações de reflexões dirigidas para a relação entre expectativas e qualidades de vida. Também aí estando presente a preocupação com as dinâmicas criativas do trabalho, em especial, como motivação para as atividades produtivas de pessoas idosas, mais propensas à criatividade e menos receptivas ao mero cumprimento de ordens e da realização de tarefas repetitivas que não caracterizam o sentido e o objetivo integral do trabalho.
Apenas para aprofundar um pouco as dificuldades relativas às mudanças na mentalidade que valoriza o trabalho como o único fator que dignifica o homem, lembremos que estamos inseridos historicamente na perspectiva ideológica que realça a idolatria do trabalho, do mercado, do consumo e da competitividade como valores essenciais para medir a qualidade humana. Ideologia esta que imputa o sucesso aos indivíduos mais competitivos e atribuindo o fracasso aos menos competitivos, retirando do trabalho um princípio fundamental, a solidariedade e o espírito coletivo da produção. Para recuperar um pouco a construção da idolatria ao trabalho, vale a pena refletir sobre a sátira política contida no texto de Paul Lafargue 1 , “O Direito a Preguiça” de 1880. Lafargue, militante socialista, denunciava o regime de trabalho praticado nas oficinas parisienses, onde os operários trabalhavam em média 12 ou 13 horas por dia e, às vezes, as jornadas de trabalho se estendiam a 15, 16 e até 17 horas. A essa situação monstruosa ainda se acrescentava à circunstância de muitos operários estarem convencidos de que o trabalho em si mesmo era uma atividade dignificante e benéfica. (Konder, 2004). Paul Lafargue, casado com a filha de Karl Marx, manifestou sua veemente revolta com o que chamou de "santificação" do trabalho, promovida, na época por parte da intelectualidade européia, escritores, economistas e moralistas. Dentre os intelectuais franceses, Lafargue dirigia-se criticamente ao escritor Victor Hugo e as idéias de Augusto Comte, acusando-os de entoar os "cantos nauseabundos em honra do deus Progresso, o filho mais velho do Trabalho" (citado por Konder, 2004). Sua idéia expressava que o trabalho, dentro de limites impostos pela necessidade humana do ócio e do lazer é uma atividade imprescindível à autoconstrução da humanidade. Desde que passa a nos ser imposto em excesso, torna-se uma desgraça.
Segundo Konder, “Lafargue, alertava os trabalhadores para o fato de que a jornada de trabalho poderia ser substancialmente reduzida (segundo ele, poderia ser de apenas três horas), caso os avanços tecnológicos fossem usados em benefício dos que trabalham e não em proveito dos que lucram (e perseguem o aumento da produção de mercadorias, resistindo sempre à redução da jornada de trabalho, retardando-a tanto quanto podem). Mais ainda: em seu brilhante panfleto, Lafargue assegura que os trabalhadores não conseguirão convencer os patrões a investirem em inovações tecnológicas se trabalharem muito. Diz-lhes: "É porque vocês trabalham muito que as máquinas industriais se desenvolvem lentamente". E opina no sentido de que eles só obterão mudanças rápidas no aperfeiçoamento das máquinas se, ao contrário, não trabalharem muito” (Konder, 2004).
As idéias de Lafargue também abrangiam a redução da jornada de trabalho como estratégia para controlar o desemprego e aumentar o tempo dedicado ao descanso e com os cuidados com a saúde. “E, no entanto, apesar da superprodução de mercadorias, apesar das falsificações industriais, os operários atravancam o mercado em grandes grupos implorando: trabalho! trabalho! A sua superabundância devia obrigá-los a refrear a sua paixão; pelo contrário, ela leva-a ao paroxismo. Mal uma possibilidade de trabalho se apresenta, logo se atiram a ela; então são doze, catorze horas que reclamam para estarem fartos até à saciedade e no dia seguintes ei-los de novo na rua, sem mais nada para alimentarem o seu vício. Todos os anos, em todas as indústrias, sobrevém o desemprego com a regularidade das estações. Ao supertrabalho perigoso para o organismo sucede-se o repouso absoluto durante dois ou quatro meses; e, não havendo trabalho, não há a ração diária. Uma vez que o vício do trabalho está diabolicamente encavilhado no coração dos operários; uma vez que as suas exigências abafam todos os outros instintos da natureza; uma vez que a quantidade de trabalho exigida pela sociedade é forçosamente limitada pelo consumo e pela abundância de matéria-prima, por que razão devorar em seis meses o trabalho de todo o ano? Porque não distribuí-lo uniformemente por doze meses e forçar todos os operários a contentar-se com seis ou cinco horas por dia, durante o ano, em vez de apanhar indigestões de doze horas durante seis meses? Seguros da sua parte diária de trabalho, os operários já não se invejarão, já não se baterão para arrancarem mutuamente o trabalho das mãos e o pão da boca; então, não esgotados de corpo e de espírito, começarão a praticar as virtudes da preguiça” (Lafargue, 1980).
Voltando as complexidades contemporâneas do mundo do trabalho, outro aspecto importante associado ao mundo do trabalho refere-se aos comportamentos adotados pelos responsáveis pelos cargos ligados a gestão ou as chefias. Em termos da mentalidade mais legitimada para identificação das chefias, esperam-se comportamentos mais autoritários no exercício do desempenho dos cargos administrativos e executivos. Pode-se considerar a arrogância dos gerentes como sendo um dos elementos de grande risco para a criatividade, sendo que muitos desses líderes não são abertos a ouvirem os funcionários (De Bono, 2003). O lastro dessa mentalidade está na afirmação dos valores do mundo do trabalho formulados pela dinâmica da sociedade industrial, dominada pelo racionalismo, pela fragmentação e pelo autoritarismo. Estes valores alcançaram todos os setores da vida humana: famílias, escolas, empresas, governos e comunidades. Na absorção dos valores requeridos para formação para o trabalho e para a vida, impõem aos indivíduos uma postura passiva e de obediência, na família, nas escolas, no trabalho, punindo-se muitas vezes a criatividade, pois esta pode representar indícios de subversão ao que está previamente estabelecido, a criatividade pode percorrer o campo da contestação. As oposições ao estímulo, à criatividade, muitas vezes estão baseadas no fator desafio, pois o trabalho criativo apresenta grandes possibilidades de avanço e por isso ele deve estar mais livre das barreiras burocráticas que tendem a tornar mais lentas as ações destinadas as inovações dos processos produtivos. Segundo De Bono (2003), “precisamos de projetos. Precisamos gerar a criação de um caminho que nos leve adiante. Mas em um projeto há muito mais que a solução de um problema. Ele pode produzir um novo valor no qual não se havia pensado antes ou ser uma forma melhor de criar um valor já existente. Projetar é juntar as coisas para produzir um valor”.
O aparato teórico que discute hoje a configuração da sociedade pós-industrial realça a importância da construção de uma sociedade pautada no conhecimento e na informação, só possível de ser confirmada com o fortalecimento dos fundamentos da democracia, da participação, da intuição, da criatividade, do desempenho solidário do trabalho, colocando enfaticamente para o mundo do trabalho o valor da Ética, através da divisão das responsabilidades, respeitando-se o pensar, o sentir e o agir, a partir da noção da multiplicidade de inteligências, relativizando a noção uniforme de inteligência, abrindo uma nova perspectiva para a valorização da inteligência emocional, da inteligência moral, da inteligência técnica, da inteligência teórica, enfim, da inteligência racional, observando a complementaridade entre todas. Estes valores começam a desenhar com mais vigor as ações humanas, as públicas e as privadas, influenciando vários setores da vida humana, ou seja, no âmbito das famílias, das escolas, das empresas, dos governos e das comunidades.
Devemos evitar as fórmulas prontas para refletir sobre a reorganização dos valores do mundo do trabalho, contudo alguns estudiosos como David Goleman, ao trabalhar com o tema “inteligência emocional”, provocou reflexões sobre os aspectos comportamentais no cotidiano das empresas, enfocando os fenômenos das relações interpessoais, resgatando a importância do autoconhecimento para o controle das emoções como estímulo ao desenvolvimento de empatias voltadas para a valorização das habilidades relativas ao estabelecimento de comunicações harmoniosas (Goleman, 1998). Reconhecemos que as ações motivadas exclusivamente pela emoção quase sempre têm fortes componentes que podem caracterizar a construção de situações sempre mais confortáveis ou mais prazerosas, o que também pode estimular comportamentos individualistas em detrimento das necessidades ou das urgências do trabalho coletivo. Também os argumentos favoráveis ao domínio da inteligência racional esbarram muitas vezes na lógica construída pelo corporativismo, formatando comportamentos que impõe a mensagem do “sejamos racionais em benefício do nosso grupo, dos nossos interesses”, o que nem sempre é ético e produtivo.
A mediação entre os extremos pode estar na perspectiva da constante auto-avaliação e da avaliação do grupo sobre o desempenho pessoal e sobre o desempenho coletivo do trabalho, a partir de critérios ajustados pelo conjunto dos profissionais, respeitando-se a natureza das atividades e das possibilidades e dos limites conjunturais das empresas, o que certamente implica na avaliação dos resultados do trabalho. A auto-avaliação obviamente tem seu principal lastro no autoquestionamento, baseado no estímulo de valores como a generosidade, a solidariedade, ou seja, outros padrões de valores que possam minimizar ou controlar interesses materiais advindos do melhor desempenho no trabalho como mérito e conseqüente recompensa financeira, processos estes que acentuam o individualismo, a competição localizada no objetivo do retorno em dinheiro, em poder e na legitimação de vaidades, impondo ao trabalho uma característica de esforço pessoal como fórmula do sucesso. Um dos princípios do auto-questionamento reside na reflexão sobre os processos agregadores baseados na lógica da multiplicação de competências, no crescimento do bem-estar das pessoas, das equipes, das comunidades, como caminho para neutralizar as conveniências pessoais em favor do sucesso coletivo. A motivação coletiva do trabalho pode aumentar a produtividade, construir excelências e reduzir os fatores de estresse que comprometem a saúde dos trabalhadores.
Os processos que caracterizam exclusão dos indivíduos no interior do processo produtivo, contribuem para acentuar a baixa-estima, o conseqüente abandono do emprego e/ou aumento do desemprego, solicitações de aposentadorias precoces, perdas de direitos, mudanças no mercado de trabalho, aumento de comprometimentos com a saúde mental, como a depressão e outras doenças onde os fatores emocionais adquirem importância significativa, fatores que pertencem a um amplo contexto, que entre outras questões, acentua a desvalorização humana em função do domínio do uso de tecnologias que ameaçam a participação humana no processo produtivo, vulnerabilizando a capacidade humana em concorrência com a máquina, embora seja imperioso destacar que a incorporação de inovações tecnológicas e organizacionais à esfera produtiva, quando voltada para a finalidade humana, pode poupar o trabalho humano de atividades insalubres e perigosas, diminuindo as condições que favorecem a doença e a morte como conseqüência do trabalho. Contudo, esta percepção contribui, como vimos, para a formulação de perspectivas “otimistas sobre a trajetória histórica da humanidade e tenta explorar neste processo a oportunidade de realização de parte da utopia moderna, rumo à emancipação dos seres humanos do jugo do trabalho: as máquinas trabalhariam enquanto as pessoas se dedicariam ao lazer, à preguiça, à criação, às artes, à vivência solidária” (Rigotto, 1998).
Podemos admitir que o processo tecnológico da modernidade poderia se estabelecer em benefício do ócio, não fosse a estruturação mundial das regras do neoliberalismo em benefício da hegemonia das gigantescas empresas transnacionais, que verticalizaram monopólios tecnológicos para concretizar a concentração de riqueza, estabelecendo uma redefinição da divisão internacional do trabalho, cujos efeitos críticos apresentam-se no processo produtivo, incluindo aí a precarização do trabalho, a falência dos sindicatos das categorias mais passíveis de terceirização, a criação de elites sindicais das categorias consideradas importantes no processo acumulativo do capital transnacional, a fragilidade dos trabalhadores para as ações coletivas.
O rápido e ambicioso projeto tecnológico das sociedades industriais revela-se também como agressivo e destrutivo, gerador de aprofundamentos de sérias problemáticas sociais e ambientais, tais como o desemprego, a degradação do trabalho, a violência, a predação do meio ambiente, a propagação acelerada de doenças, projetando como urgência a necessidade da reestruturação produtiva como forma de atenuar os efeitos negativos da era tecnológica e os paradoxos contidos na chamada globalização. A globalização, apoiada no redimensionamento de espaço e tempo, agiliza interesses hegemônicos dos países dominantes, que se tornaram exportadores de tecnologia, possibilitando aos países pobres, o avanço da industrialização no sentido de mantê-los em desenvolvimento, caracterizando a continuidade dos processos desiguais, agravando as problemáticas sociais, econômicas, ambientais, alcançando a saúde dos trabalhadores, através da configuração de novos riscos, em especial, os sociais e os ambientais (Rigotto, 1998).
Dentro da lógica neoliberal, a precarização do trabalho também atinge as instituições públicas, em especial as de ensino e pesquisa. As corporações internacionais que se apropriaram ou desenvolvem ciência e tecnologia, estrategicamente, estabelecem nos países hegemônicos, onde mantém suas sedes, relações que visam o estímulo à pesquisa, baseado na perspectiva imediata da utilização tecnológica para operacionalizar a ciência, fortalecendo os centros de ensino e de pesquisa como parceiros e fornecedores de projetos viabilizadores de produtos imediatos, deixando para os países periféricos alternativas como o trabalho terceirizado, os empregos flexibilizados, e não raramente, incentivam a fuga de pesquisadores considerados inovadores e brilhantes de seus países de origem.
“Essa é uma relação desigual. Nos países altamente desenvolvidos concentram-se todas as atividades e trabalho de pesquisa, de elaboração de projetos, de testes de novos modelos de produtos, e na realização de algumas fases estratégicas de fabricação. Já para os países da periferia capitalista restam as atividades de montagem ou confecção final dos produtos, ou de representação comercial. Os resultados também são diferentes. Enquanto nos países centrais a renda gerada por esses tipos de investimentos, pelos royalties, pelo licenciamento de marcas e remessas de lucros, que se traduzem em bilhões de dólares, acabam impulsionando o desenvolvimento econômico, social e cultural, o que tem reflexo imediato na qualidade de vida dos seus cidadãos, traduzido em mais empregos, serviços públicos de alto nível, atividades culturais mais intensas, alimentação, moradia e vestimentas dignas, nos países periféricos, onde as unidades industriais transnacionais altamente automatizadas se instalam as relações são bem diferentes. Elas quase não geram empregos, ou quando geram, contratam intermediários para recrutar trabalho pessimamente remunerado, a chamada terceirização e as franquias” (Priori, 2001).
Abordando a reforma neoliberal como projeto acelerado voltado para aumentar a competitividade das instituições públicas de pesquisa, Marcos Barbosa de Oliveira afirma:
“(...) os cientistas não são seres superiores, não são menos sujeitos, em comparação com qualquer outra categoria de trabalhadores, a terem seus valores moldados pelo mundo em que vivem, e especialmente pelas instituições em que trabalham. Tendo sua vida profissional regida por valores mercantis, nada garante que eles não venham a interiorizar esses valores. Sendo a reforma neoliberal levada a seu termo, não será de surpreender que ao fim do processo estejam reduzidos apenas a pessoas cuja única preocupação na vida é ganhar mais dinheiro. Assim, se a concepção é falsa por não corresponder à realidade no presente, e a tem por outro lado o poder de transformar esta realidade, adaptando-a a idéia. Se a Universidade trata seus pesquisadores como trabalhadores alienados, que vendem sua força de trabalho pelo melhor preço, e se submetem a não terem espaço institucional para refletir sobre sua prática, então – se não houver resistência, é claro – eles vão se transformar exatamente nisso.” (Oliveira, 2002)
Estas reflexões estão associadas aos processos de transformações das instituições de ensino, pesquisa e tecnologia que vem passando por transformações no sentido de acatar os princípios contidos na proposta da reforma neoliberal que vem sendo implementada nas instituições públicas de pesquisa e ensino, cujos indícios estão nos crescentes processos de terceirização, na precarização do trabalho, na exacerbação da demanda quantitativa da produção científica que tende a reproduzir pacotes tecnológicos, na negligência das condições de trabalho relacionado à carência de infra-estrutura para execução das atividades, na falta de atenção à saúde dos trabalhadores, na pressão sobre o trabalho em nome da busca da competitividade, itens que acabam se realizando como ingredientes do sucateamento das instituições públicas e comprometimento da qualidade profissional dos servidores públicos. Uma contrapartida que pode reverter esse processo encontra-se na preocupação das instituições em promover ambientes saudáveis, tanto do ponto-de-vista material, compreendendo as boas condições ambientais de trabalho, como do ponto-de-vista cognitivo, compreendendo a otimização da infra-estrutura necessária para realização da ciência com criatividade e contemplação crítica.
“A criação de ambientes seguros e saudáveis exige por um lado, políticas públicas comprometidas com a qualidade de vida e o desenvolvimento sustentável e, por outro lado, a co-responsabilidade do cidadão na adoção de comportamentos e atitudes que por sua vez envolvem acesso à educação, formação e informação continuada, e sua participação nos movimentos sociais e coletivos promotores do desenvolvimento social.” (IV Conferência das Cidades, 2002)
Políticas institucionais capazes implementar novos estímulos cognitivos para viabilizar a construção de ambientes saudáveis vem sendo testadas visando à realização do valor das sustentabilidades, econômica, social, humana e ecológica, para efetivação de desenvolvimento, considerando, os pressupostos de qualidade de vida e conforto ambiental que integram hoje o conceito de saúde. Da mesma forma, o novo paradigma ambiental – que supera a ideologia antropocêntrica presente em todas as teorias sociológicas e biomédicas anteriores – desata os vínculos da ecologia presa à visão puramente biocêntrica e associa a natureza a uma expressão de criatividade, atividade, diversidade e inter-relação de todos os seres em contraponto ao conceito cartesiano, que concebe a natureza como inerte, passiva, uniforme, mecanicista, fragmentada dentro de si mesma, separada do ser humano e pronta a ser explorada por ele (Shiva, 1991). Esta percepção desperta aspectos e estímulos cognitivos capazes de gerar e preservar sustentabilidades, em especial, a sustentabilidade humana, calcada em sua relação com a plenitude da vida.
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" – M. B. de A. Navarro é Doutora em História da Ciência (FIOCRUZ). Atua como Pesquisadora do Núcleo de Biossegurança da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). E ndereço para contato: Fundação Oswaldo Cruz, Núcleo de Biosegurança. Av. Brasil, 4036, Salas 715/16, Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ 21.040-361, Brasil. Telefone/Fax: +55 (21) 2590-5988. E-mail : mnavarro@fiocruz.br .
(1) Socialista, deputado de Lille, 1842-1911.
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