Sapatada fatal
O repórter e a objetividade
Por Ruy Castro (*)
Chocado e divertido com o repórter da TV iraquiana que atirou os sapatos contra o presidente Bush durante uma coletiva em Bagdá no último domingo, fui aos alfarrábios para ver o que os manuais de redação e as velhas apostilas mimeografadas dos cursos de jornalismo teriam a dizer sobre tal atitude. Não encontrei nada. Sinal de que os professores não pensaram na possibilidade.
Nem precisavam. A ética jornalística exige que as relações entre repórter e entrevistado sejam de objetividade total. O repórter pergunta, o entrevistado responde e o repórter anota ou grava, e faz nova pergunta. Não é permitido ao repórter flertar com o entrevistado, piscar para ele ou pedi-lo em casamento, mesmo que o entrevistado seja a Alessandra Negrini. Muito menos dar-lhe uma bofetada, cuspir-lhe no olho ou atirar-lhe os sapatos, mesmo que o entrevistado seja o Bush.
Nesse caso, pode dizer-se que Muntazer al Zaidi, o repórter iraquiano, transgrediu uma das cláusulas pétreas do jornalismo. Onde já se viu um repórter atirar os sapatos no homem mais poderoso do mundo? E ainda mais no Iraque, onde tal ato tem um forte conteúdo subjetivo -significa que a pessoa alvejada com os sapatos está abaixo da sujeira que eles pisam na rua.
Duas coisas chamaram a atenção: a rapidez com que Bush se esquivou, como se treinasse isso todos os dias, e a lerdeza dos seguranças, permitindo que Al Zaidi se agachasse, descalçasse o segundo sapato e o atirasse.
E se a arma não fosse um sapato, mas uma pistola? Quantos disparos não teriam sido feitos no mesmo espaço de tempo?
Para milhões de iraquianos, o dramático Al Zaidi é um herói. Mas outros estão tiriricas, por ele ter preferido ofender Bush subjetivamente, ao invés de -aí, sim- objetivamente matá-lo.
* Ruy Castro - Jornalista, escritor e biógrafo
Fonte: Folha de S. Paulo
Comentário: Perdeu a chance de realizar o desejo de 3/4 da humanidade: dar uma sapatada na Dilma, e ainda por cima estragou os sapatos.
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