Desassossego

"Tenho sido sempre um sonhador irônico, infiel às promessas interiores." (Bernardo Soares - heterônimo de F. Pessoa)
Gozei sempre, como outro e estrangeiro, as derrotas dos meus devaneios, assistente casual ao que pensei ser. Nunca dei crença aquilo em que acreditei. Enchi as mãos de areia, chamei-lhe ouro, e abri as mãos dela toda, escorrente. A frase fora a única verdade. Com a frase dita estava tudo feito; o mais era a areia que sempre fora.

Se não fosse o sonhar sempre, o viver num perpétuo alheamento, poderia, de bom grado, chamar-me um realista, isto é, um indivíduo para quem o mundo exterior é uma nação independente. Mas prefiro não me dar nome, ser o que sou com uma certa obscuridade e ter comigo a malícia de me não saber prever.

Tenho uma espécie de dever de sonhar sempre, pois, não sendo mais, nem querendo ser mais, que um espectador de mim mesmo, tenho que ter o melhor espectáculo que posso. Assim me construo a ouro e sedas, em salas supostas, palco falso, cenário antigo, sonho criado entre jogos de luzes brandas e músicas - visíveis.

Guardo, íntima, como a memória de um beijo grato, a lembrança de infância de um teatro em que o cenário azulado e lunar representava o terraço de um palácio impossível. Havia, pintado também, um parque vasto em roda, e gastei a alma em viver como real aquilo tudo. A música, que soava branda nessa ocasião mental da minha experiência da vida, trazia para real de febre esse cenário dado.

O cenário era definitivamente azulado e lunar. No palco não me lembro quem aparecia, mas a peça que ponho na paisagem lembrada sai-me hoje dos versos de Verlaine e de Pessanha; não era a que deslembro, passada no palco vivo aquém daquela realidade de azul música. Era minha e fluida, a mascarada imensa e lunar, o interlúdio de prata e azul findo.

Depois veio a vida. Nessa noite levaram-me a cear ao Leão. Tenho ainda a memória dos bifes no paladar da saudade - bifes, sei ou suponho, como hoje ninguém faz ou eu não como. E tudo se me mistura - infância, vivida a distância, comida saborosa de noite, cenário lunar, Verlaine futuro e eu presente - numa diagonal difusas, num espaço falso entre o que fui e o que sou.

Bernardo Soares - Do Livro do Desassossego

Quem é Bernardo Soares?

Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa, onde viveu toda a sua humilde vida de empregado.Vivia sozinho, na Baixa, num quarto alugado perto do escritório onde trabalhava e dos escritórios onde trabalhava Fernando Pessoa.

Conheceram-se numa pequena casa de pasto habitualmente freqüentada por ambos. Foi aí que Bernardo Soares deu a ler a Fernando Pessoa o seu “Livro do Desassossego”.

Bernardo Soares visto por Fernando Pessoa

”Há em Lisboa um pequeno numero de restaurantes ou casas de pasto em que , sobre uma loja com feitio de taberna decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco freqüentadas, é freqüente encontrarem-se typos curiosos, cara sem interesse, uma série de apartes na vida.

O desejo de sossego e a conveniência dos preços levaram-me, em período da minha vida, a ser freqüente em uma sobreloja d’essas.Sucedia que quando calhava jantar pelas sete horas quase sempre encontrava um individuo cujo aspecto, não me interessando a principio, pouco a pouco passou a interessar-me.

Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando em pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava - parecia indicar vários, privações, angustias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provem de ter sofrido muito.

Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como que prescrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele.

Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de inteligência animava de certo modo o incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angustia fria, cobria tão regularmente o seu aspecto que era difícil descortinar outro traço além d’esse.

Soube incidentalmente, por um criado do restaurante, que era empregado de comércio, numa casa alli perto.Um dia houve um acontecimento na rua, por baixo das janelas - uma scena de pugilato entre dois indivíduos. Os que estavam na sobreloja correram às janellas, e eu também, e também o individuo de quem falo.

Troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A sua voz era baça e tremula como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar. Mas era porventura absurdo dar esse relevo ao meu colega vespertino de restaurante.

Não sei porquê, passamos a cumprimentarmos-nos desde esse dia. Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstancia absurda de coincidir virmos ambos jantar as nove e meia, entramos em uma conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da revista “Orpheu” que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem a “Orpheu” soe ser para poucos.

Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, só ía gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também. "

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