Da natureza da justiça e da injustiça

A Crítica do Discurso Poético na República de Platão

Por Adriana Natrielli

Na República, Platão descreve o diálogo no qual Sócrates pesquisa a natureza da justiça e da injustiça. Para isso, transferindo a análise do individual ao coletivo, procura a justiça “em letras grandes”, imaginando a constituição de uma cidade ideal. À medida em que essa cidade vai sendo construída, desde sua forma mais primitiva até se tornar mais complexa, há a necessidade de uma especialização de tarefas cada vez maior.

Essa cidade terá então uma classe de guardiões para defendê-la e estes deverão receber uma boa educação para que sejam, segundo Sócrates, “brandos para os compatriotas embora acerbos para os inimigos; caso contrário não terão de esperar que outros a destruam, mas eles mesmos se anteciparão a fazê-lo” (375c).
Sendo assim, uma grande parte do diálogo se dedica a decidir qual seria a educação mais adequada para se formar homens “com uma certa natureza filosófica” que terão a função de proteger e governar essa cidade imaginada como perfeita e justa. Os livros II e III da República descrevem com detalhes essa educação destinada aos guardiões que serão os melhores entre os cidadãos. Sua educação será à maneira tradicional grega, isto é, através da ginástica para o aprimoramento do corpo e da música para gerar harmonia na alma. Será portanto nessa discussão sobre qual seria a educação mais adequada para se formar homens com uma certa natureza filosófica que surge pela primeira vez o tema da poesia na República.

A poesia é tratada nos livros II e III como parte da educação musical que deveria ser destinada aos guardiões da cidade. Essa poesia da qual Sócrates fala são os mitos ou as histórias sobre os deuses que eram contadas às crianças desde cedo e que também serviram de base para o surgimento da tragédia e da comédia. Mas Sócrates irá dizer que “das (fábulas) que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se” (377c), pois para ele elas estão cheias de mentiras e não deveriam mostrar os seres mais elevados lutando e se odiando uns aos outros.

Sócrates passa assim todo livro II e III prescrevendo regulamentos à criação poética e, após analisar os conteúdos das histórias, passa a discutir a maneira como essas eram contadas e qual seria a forma mais adequada. Sócrates expõe então três formas de narrativa que podem ser utilizadas ao se contar uma história: a simples narrativa na qual o poeta fala de seu ponto de vista sem representar ser outra pessoa, a imitação ou mímese que é pura representação e na qual o poeta se omite e uma terceira mista, constituída pela mistura de ambas (392d).
Mais a frente, Sócrates irá identificar cada um desse tipos de narrativa da seguinte forma: “em poesia e em prosa há uma espécie que é toda imitação, como tu dizes que é a tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta – é nos ditirambos que pode se encontrar de preferência; e outra ainda constituída por ambas, que se usa na composição da epopéia e de muitos outros gêneros” (394d). No livro III da República, a conclusão é que o uso da mímese deverá ser limitado se destinando apenas à imitação dos homens de bem, pois, segundo Sócrates, “a baixeza, não devem ser capaz de praticá-la nem ser capazes de a imitar, nem nenhum dos outros vícios, a fim de que, partindo da imitação, passem ao gozo da realidade” (395c).

A partir daí, o tema da poesia irá reaparecer no diálogo somente no livro X, após o assunto principal da República, que é a definição da justiça na cidade, estar aparentemente concluído. Quais seriam as razões para esse deslocado retorno ao tema? Vários comentadores consideram o livro X como um apêndice1, e ainda que haja quem o considere até mesmo como um epílogo2 em relação ao restante da obra, o fato é que o que é dito sobre a poesia e a mímese no livro X não parece se encaixar muito bem com o que havia sido dito antes Se nos livros II e III, como vimos, o objetivo de Sócrates é tratar dos regulamentos que deveriam ser impostos à poesia como um todo, fazendo parte dela suas modalidades imitativa e não imitativa, no livro X há um deslocamento do foco da discussão e esta recairá unicamente sobre a poesia imitativa ou mimética.
Outro ponto é que se antes a aceitação da poesia imitativa era parcial, ou seja, deveria ser utilizada apenas para imitar o homem de bem, no livro X Sócrates declara a necessidade de a recusar em absoluto (595a). Há aqui portanto um isolamento da mímese como tema principal, enquanto que a discussão sobre os guardiões e a função educativa da poesia é deixada de lado. Sendo assim, o problema do livro X não é mais o de determinar se a poesia imitativa seria ou não adequada à educação dos jovens daquela cidade ideal, mas o de mostrar por que ela não deveria mais ser executada nem ouvida, ao que parece, por ninguém dessa cidade justa.

As razões dadas por Sócrates no começo do livro X para o retorno ao tema são duas: primeiro o fato de ter se definido anteriormente cada parte da alma e depois diz que: “todas as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência (dianoia) dos ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto (farmacon) o conhecimento da sua verdadeira natureza” (595b).

O livro X tem basicamente três objetivos: o de esclarecer qual a natureza da mímese que é a base da poesia imitativa (595a-598d), o de mostrar que os poetas não têm conhecimentos (episteme) verdadeiros sobre os assuntos de que parecem falar tão bem, iludindo a inteligência dos espectadores através do encanto da poesia (598d–602c) e, por fim, o de associar a poesia à pior parte da alma em detrimento da parte mais sábia e racional que deveria governar as demais (602c- 608b).

Mas parece que o principal motivo do descompasso entre o livro X e o resto da obra está na flutuação do sentido da palavra mímese, a qual passa a ser concebida como a própria poesia e não mais como apenas um de seus modos.

Enquanto no livro III a mímese era caracterizada no contexto das artes dramáticas como modo de expressão ou representação, no livro X a mímese será caracterizada, de um modo mais geral, como o modo através do qual o homem pode produzir qualquer coisa: artefatos, pintura ou poesia. A diferença entre modo de expressão e modo de produção se expressa no fato de que na primeira acepção da palavra mímese o poeta assume em si a forma do que imita, enquanto na segunda, ele produz algo exterior a si.

Isso implica que, se antes a mímese não era totalmente admitida em virtude de um julgamento moral sobre bons ou maus modos de conduta, agora a mímese deverá ser completamente rejeitada em virtude de seu estatuto ontológico, ou seja, por um julgamento acerca da realidade de seus produtos. E é isso que define a mímese no livro X, uma forma de produzir coisas que serão sempre inferiores em realidade em relação aos modelos dos quais partiram. Não interessa aqui se os modelos são moralmente bons ou maus, o que condena a imitação é sua natureza ontologicamente inferior.

No livro X, o conceito de mímese a ser aplicado à produção dos poetas é sempre retirado da comparação com a atividade do pintor que imita visualmente coisas particulares. Mas entre poeta e pintor há ainda a figura do artesão. O exemplo dado por Sócrates para explicar as relações entre as cópias e os modelos será aquele dos três tipos de cama. Há uma cama que é a cama natural ou a Idéia de cama, única e essencial, da qual deus é o criador, uma segunda, a cama particular feita pelo artesão a partir da Idéia de cama anterior e, por fim, a cama do pintor que imitou não a Idéia de cama, mas a cama particular tal como ela aparece.
É importante observar o fato de que o pintor procurará sempre imitar a aparência da cama e não o Ser mesmo da cama. A conclusão será que as obras dos pintores e, por conseqüência, as obras dos poetas, “são objetos aparentes, desprovidos de existência real” (596e), por serem feitos através da mímese.

Chegamos então ao primeiro objetivo do livro X, que é definir a natureza da mímese. Ela é definida como algo que produz coisas “três graus afastadas da realidade”, segundo o modo grego de contar os extremos, e se ela é utilizada por pintores e poetas trágicos, estes não são criadores de nada mas apenas imitadores ou mimetés. Nesse sentido, o conceito de mímese exposto nessa primeira etapa do livro X se liga intimamente com a teoria das Formas, sendo uma explicação ou imagem da ligação entre as Idéias e as coisas particulares, entre o plano sensível e o inteligível.

Mas de que modo a metáfora da imitação visual pode servir ao segundo objetivo do livro X, que é determinar qual o estatuto do conhecimento dos poetas, se um pintor não precisa necessariamente ter conhecimentos verdadeiros sobre aquilo que imita?

Dizer que os pintores são produtores de algo que se encontra “três graus afastado da realidade” só faz sentido a partir da descrição metafísica da Forma dos particulares e da pintura, mas para explicar porque faltam conhecimentos ao poeta será necessário outro argumento.

O exemplo dado por Sócrates para explicar esse ponto será o das três artes relativas ao mesmo objeto (601c – 602b). Segundo ele há “a de o utilizar, a de o confeccionar, e a de o imitar” (601d), sendo que quem utiliza o objeto possui sua ciência (episteme), quem fabrica pode ter no máximo uma opinião (doxa) verdadeira pelo contato com quem utiliza, ao passo que, quem imita não possui nem ciência, nem opinião verdadeira e, nesse sentido, podemos dizer que Platão nega o valor das artes como base para o conhecimento.

A principal diferença entre esse argumento das três artes e o anterior da analogia entre a pintura e a poesia é que nesse caso não se discute os níveis de realidade dos objetos envolvidos, pois o que se utiliza, o que se produz e o que se imita se encontram num mesmo nível de realidade. O poeta é um imitador enquanto não utiliza nem fabrica aquilo que fala, mas não enquanto não tem nenhum conhecimento das Formas ou Idéias.

Portanto, devemos considerar que temos aqui dois argumentos completamente independentes: por um lado o argumento metafísico utilizado por Sócrates, com base nas semelhanças entre a pintura e a poesia que serve para mostrar que a mímese produz obras “três vezes afastadas da realidade” e, por outro, o argumento que mostra que aqueles que utilizam a mímese não possuem conhecimentos, ou a ciência do que imitam.

Se são argumentações diferentes, então só podemos entender essa lógica argumentativa buscando auxílio em outra parte. Essa seqüência na verdade se explica pelas estreita ligação entre as noções de Idéia e episteme na obra de Platão. De fato, somente a Idéia ou o Ser mesmo das coisas pode ser a base do verdadeiro conhecimento, enquanto a opinião (doxa) se liga ao sensível e se funda nas aparências das coisas e não no que elas realmente são (476c).

Adriana Natrielli* - Mestranda em Filosofia, FFLCH, USP.
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PLATÃO - A REPÚBLICA E O CIDADÃO IDEAIS

Por Rudini Sampaio

A filosofia platônica é uma grande reflexão sobre a totalidade da cultura e da vida do povo grego, com a finalidade de lançar bases ou fundamentos para uma construção sólida. Mas, sua filosofia também pode ser considerada atual pela sua abrangência e importância dos problemas discutidos.

Platão é um grande opositor de Homero e Hesíodo, devido a explicação da realidade através dos mitos, e é quem ultrapassa o grande abismo gerado pela contradição das filosofias de Parmênides de Eléia e Heráclito de Éfeso.

Discípulo de Sócrates, Platão vai concluir que o homem-medida (de Protágoras) é, por sua vez, medido por realidade superior; que o conceito repousa na transcendência do mundo ideal.

Os valores humanos, na apreciação de Platão, são perenes, não dependendo das convenções humanas. Eles repousam numa estrutura lógica de ser, que transcende a qualquer criação humana; e todo homem pode conhecê-la, através do uso reto da razão.

Platão fundou uma escola, a Academia, e escreveu os famosos diálogos, onde Sócrates quase sempre aparece como protagonista, a saber: Hípias menor, Alcibíades, Apologia de Sócrates, Eutífron, Críton, Hípias maior, Cármides, Laques, Lísias, Protágoras, Górgias, Mênon, Fédon, Banquete, Fedro, Ion, Menéxemo, Eutidemo, Crátilo, República, Parmênides, Teeteto, Sofista, Político, Filebo, Timeu, Crítias e Leis.

O ponto de partida dos vôos metafísicos de Platão é o conceito, a realidade subjetiva, que fundamenta o saber humano. Com o conceito, o conhecimento se define, se fixa e se constitui na sua essencialidade inteligível. Torna-se possível explicar a existência de um discurso válido, para todos os tempos.

Platão procurava entender a questão a respeito da origem da universalidade e da necessidade do conceito. No diálogo Mênon, ele parece resolver essa questão. Segundo ele, ao mundo subjetivo do conceito, corresponde o mundo objetivo das idéias. Resumidamente, uma cor não é sentida senão a forma subjetiva de uma realidade objetiva. Essa realidade, para Platão, é a idéia de cor. Existe, portanto, um mundo de realidades ideais, o mundo da plena inteligibilidade, o mundo das justificativas cabais de todo o processo racional, o mundo real por excelência.

Parmênides, e sua filosofia do ser, tornaram a reflexão infecunda. Platão supera esse obstáculo reconhecendo que, no âmago da idéia de ser, reside a contradição entre o uno e o múltiplo (verso). A partir daí, ele pode pensar a multiplicidade, sem negar a unidade, e vice-versa.

Platão estava inserido na cultura grega que tinha fé na inteligibilidade do real, que Parmênides já expressava com a sua doutrina sobre o ser. Platão conclui que, se partirmos da hipótese de que o real é inteligível, ou seja, pensável e justificável racionalmente, o processo lógico do pensamento, através de articulações racionais, é o caminho que nos leva ao próprio coração da realidade, a própria estrutura do ser.

A Dialética, para Platão, seria o processo de desdobramento do conteúdo racional do pensamento, pois esse desdobramento se efetua em força da contradição. Para ele, o dialético é o filósofo, aquele que sabe dividir, revelar as contradições, mas também sabe unir, superar as contradições numa unidade superior.

De degrau em degrau, dá-se a ascensão (dialética ascendente) à plenitude da inteligibilidade, a unidade absoluta. Chegando a esse ponto, Platão inverte a tese sofística de que a interioridade ou subjetividade do homem é o fundamento. A medida absoluta passa a ser Deus, a divindade, a unidade absoluta.

Deus, nos diálogos platônicos, é conclusão lógica de um processo racional, mas é também plenitude amorosa, Éros, que causa as tensões para se chegar a harmonia. Esses aspectos são abordados no Fedro (a beleza) e no Banquete (o amor). No plano transcendente do ser, é a idéia do Bem que explica toda a verdade, torna-a inteligível e boa.

O racionalismo de Platão é, contudo, realista. A idéia não é mera forma subjetiva, ela é a própria transparência do real, superando o relativismo moral e o ceticismo. À essa suposição platônica de que é possível para a razão intuir a estrutura inteligível do ser, numa visão de totalidade (visão da essência), costuma-se chamar hoje de Metafísica, em oposição a Dialética.

Em Platão, aparecem intimamente unidas dialética e concepção metafísica da filosofia, embora ele não tenha usado o termo metafísica, ainda não existente. Zenão de Eléia, discípulo de Parmênides, é considerado por Aristóteles o inventor da dialética, devido as famosas séries de argumentos paradoxais que refutam o que a experiência nos revela. Platão chamaria isso de Erística, num sentido pejorativo e oposto à Dialética. Para Platão, a dialética é um sério processo gradual da mente em busca do primeiro princípio absoluto, e não um jogo verbal ou virtuosismo da mente. Com a dialética, foi-lhe possível superar os paradoxos de Zenão, a teses paralisantes de Parmênides e o relativismo de Heráclito e dos sofistas.

Em diálogos como Fédon e República, Platão apresenta a dialética em seu aspecto ascendente: a partir da multiplicidade dos seres e da subjetividade, alcançar a idéia suprema, que é a suprema Bondade, contemplar o mundo das idéias. Em diálogos como Sofista, Político e Filebo, Platão faz o caminho inverso. É a dialética descendente: perceber na unidade, por um processo de divisão (diáiresis) e multiplicidade; colher as diferenças unidas na igualdade.

No contexto da reflexão platônica, por um lado, o homem é visto como ser racional, pois é o homem que instaura o processo de justificação racional da realidade. Por outro lado, Platão era obrigado a admitir que o homem é também sensibilidade e emoção; é um corpo que faz parte da physis. Como se fez a união de racionalidade e sensibilidade no ser humano?

Platão vai figurar ou conceituar esse dualismo em termos de idéia, que é realidade positiva, plenitude de ser; e de algo que é como pólo negativo, a receptividade absoluta, para o qual não encontra nome, e que Aristóteles aproxima da sua concepção de matéria (hylé).

No diálogo Timeu, Platão é mais minucioso, distinguindo a idéia, a matéria, o espaço (chora), a necessidade (ananké) e o demiurgo. O demiurgo usando da matéria que está no espaço onde vigora a necessidade (a desordem, a não-racionalidade) dá origem ao cosmos (ordem, beleza, racionalidade), enquanto aplica as idéias à matéria. A racionalidade é representada pelo demiurgo e pelas idéias; a irracionalidade é representada pela matéria, o espaço e pela necessidade. Esse dualismo espírito-matéria resume a compreensão platônica da estrutura interna do ser humano.

Com o passar do tempo, o pensamento platônico se reveste de maior religiosidade. Em As Leis, Deus torna-se a medida de tudo, contradizendo o homem-medida de Protágoras. Para Platão, existe o mundo espaço-temporal e o mundo das idéias, mundo imaterial ou ideal. O homem está como mediador, a meio caminho entre esses dois mundos: sua alma participa do mundo ideal, e o seu corpo participa do mundo espaço-temporal.

A alma se degrada no contato com a matéria, esquece todo o conhecimento obtido na contemplação das idéias. Recordá-las constitui o aprendizado (maiêutica), tese do conhecer como reconhecimento.

A matéria para Platão era fonte de limitação e até de maldade. Nos diálogos da maturidade como Fédon, Fedro, Banquete e República , o ideal ascético de vida aparece com forte luminosidade, recordando o pitagorismo. O sábio é sobretudo o asceta, o que se esforça para se libertar da sensibilidade e para integrar-se ao mundo das idéias.

Em diálogos posteriores, tais como Filebo, Timeu e Leis, Platão integra melhor nas exigências da racionalidade (prioritária) aquelas da sensibilidade e do prazer material. Sábio não é tanto o asceta espartano que renunciou a beber o vinho e a celebrar banquetes, para não se deixar perverter pelos atrativos deles. Sábio é muito mais o ateniense sóbrio, capaz de participar de banquetes, saborear vinhos, gozar da convivência, sem contudo se entregar à intemperança.

Em A República, Platão idealiza uma cidade, na qual dirigentes e guardiães representam a encarnação da pura racionalidade. Neles encontra discípulos dóceis, capazes de compreender todas as renúncias que a razão lhes impõe, mesmo quando duras. O egoísmo está superado e as paixões, controladas. Os interesses pessoais se casam com os da totalidade social, e o príncipe filósofo é a tipificação perfeita do demiurgo terreno. Apesar de tudo isso e desse ideal de Bem comum, Platão parece reconhecer o caráter utópico desse projeto político, no final do livro IX de A República.

Tendo em vista esse ideal, o trabalho manual continuava não valorizado no âmbito da cidade-estado. A classe dos trabalhadores não era classe cidadã, pois não lhes sobrava tempo para a contemplação teórica da verdade e para a práxis política. Para Platão, o ideal humano se realizava na figura do cidadão filósofo, livre das incumbências da sobrevivência, constituindo um ideal altamente elitista.

Para além de todas as utopias da sua república ideal, da figura dos reis filósofos, devemos apreciar o ideal ético de Estado e o esforço de Platão para desvendar os vínculos que ligam os destinos das pessoas ao destino da cidade.

Em Platão a filosofia é ética, dialética, metafísica, teologia, antropologia, estética; e é também cosmologia e pedagogia; é sobretudo política, ou melhor, crítica social. É por isso que ele foi considerado quase um deus por Plotino e a escola neo-platônica, foi traduzido para o cristianismo por santo Agostinho, e continua dando, ainda hoje, pistas válidas de reflexão filosófica.
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Excertos de A Repúbica

Platão

SÓCRATES - Reflete agora sobre o que te vou dizer. Qual é o objeto da pintura? O de representar o que é, tal qual é, ou o que parece, tal qual parece? Imita a aparência ou a realidade?

GLAUCO - A aparência.

SÓCRATES - Logo, a arte de imitar está muito afastada do verdadeiro; e a razão por que faz tantas coisas é que só toma uma pequena parte de cada uma, e esta mesmo não passa de simulacro ou fantasma. Um pintor, por exemplo, pinta um sapateiro, um carpinteiro ou outro artesão qualquer, sem ter nenhum conhecimento de suas respectivas artes. Isso não impede, se é bom pintor, de iludir às crianças e aos ignorantes, mostrando-lhes de longe um carpinteiro por ele representado e que tomem por imitação da verdade.

GLAUCO - Sem dúvida.

SÓCRATES - O mesmo se deve entender, meu caro amigo, de todos os que fazem como o pintor. Sempre que alguém nos vier dizer ter encontrado um homem que sabe todos os ofícios e reúne em si, em elevado grau, todos os conhecimentos que se acham repartidos entre muitos, é preciso desenganá-lo, mostrando-lhe que não passa de um tolo por se ter deixado lograr por um imitador ou mágico a quem tomou por sábio, simplesmente porque não sabe discernir a ciência da ignorância, a realidade da imitação.

GLAUCO - É a pura verdade.

SÓCRATES - Resta-nos agora considerar a tragédia e Homero, seu criador. Como ouvimos diariamente a certas pessoas que os poetas trágicos entendem muito de todas as artes e ciências humanas que se referem ao vício e à virtude e mesmo com as de natureza divina; visto que a um bom poeta é necessário estar perfeitamente instruído nos assuntos de que trata se quiser versá-lo com êxito que de outra sorte lhe seria impossível, cumpre verificarmos se os que assim falam não se deixam iludir por esta espécie de imitadores; se, vendo-lhes as produções, esqueceram de notar que se afastam três graus da realidade e que, sem conhecer a verdade é fácil compô-los, visto que não passam, ao cabo, de meros fantasmas sem sombra do real; ou se há algo de sólido no que dizem; e se, realmente, os bons poetas entendem das matérias sobre as quais o comum dos homens pensa que escreveram bem.

SÓCRATES - A poesia imitativa produz em nós também o amor, a ira e todas as paixões da alma que têm por objetivo o prazer e a dor, influindo em todas as nossas ações, porque as alimenta e orvalha em vez de dessecá-las; faz-nos mais viciados e infelizes, pelo domínio que dá a estas paixões sobre nossa alma, em vez de mantê-las inteiramente dependentes, o que nos tornaria melhor e mais felizes.

GLAUCO - Tenho de concordar contigo.

SÓCRATES - Assim, pois, caro Glauco, quando encontrares admiradores de Homero a dizer que este poeta instruiu e formou a Grécia e que a gente aprende, lendo-o, a governar-se e a bem conduzir-se nas várias contingências da vida e que o melhor a fazer é pautar os atos por seus preceitos, será de bom conselho acolhê-los com toda a atenção e respeito, como a homens bem

intencionados e virtuosos que são, e admitir que Homero é o maior dos poetas e o primeiros das trágicos. Mas, ao mesmo tempo, não esqueças que em nossa república só se hão de tolerar como obras poéticas os hinos de louvor dos deuses e os elogios de homens ilustres. Porque assim que aí deres entrada à musa mais voluptuosa da poesia lírica ou épica, desde esse momento o prazer e a dor reinarão no Estado em lugar da lei e da razão, cuja excelência todos os homens reconheceram sempre.

GLAUCO - Nada é mais certo.

SÓCRATES - Visto que surgiu nova ocasião de falar em poesia, já ouviste o que tenho a dizer sobre o assunto para provar que, sendo o que é, tivemos razão de desterrá-la de uma vez por todas de nossa república; porquanto fora impossível resistir à força dos motivos que a isso nos levaram.


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