MiCo: A MISÉRIA DA COMPUTAÇÃO

Por Valdemar W. Setzer

  • Miséria da Computação (MiCo) é ficar horas tentando acertar um software que simplesmente recusa-se a obedecer, esquecendo-se de ir ao banheiro, comer, namorar, dormir, e fazer quaisquer outras coisas normais para quem não foi agarrado pelo computador;
  • MiCo é gastar um tempão surfando através de lixões na Web, sem conseguir chegar a algum "site" com a informação desejada;
  • MiCo é receber dezenas de e-mails por dia;
  • MiCo é perder tudo o que se está fazendo por falha da energia elétrica, travamento do micro ou por causa de um ralador misterioso que passou pelo disco rígido;
  • MiCo é um software bonitinho mas ordinário, que não tem funções que qualquer software decente deveria ter, ou faz coisas que não deveria fazer;
  • MiCo é o bug do ano 2.000;
  • MiCo é o prejuízo que as empresas têm com a informática;
  • MiCo é a "síndrome do processamento de dados" (SPD), que assola programadores e analistas de sistemas: insônia, falta de apetite, irritabilidade, anti-sociabilidade, desinteresse por tudo, e outros sintomas;
  • MiCo é ainda uma porção de outras misérias causadas pelos computadores nas empresas, nos usuários e nos programadores.

Enfim, ela ocorre sempre que se tem vontade de xingar ou destruir o computador que se está usando.

De onde vem essa miséria, que ocorre em grau muitíssimo maior do que com outras máquinas, e assola todas as pessoas que usam um computador, incluindo os programadores? Ela vem da própria natureza do computador.

De fato, ele é uma máquina como jamais houve na história. As outras máquinas têm uma funcionalidade que pode ser resumida numa breve frase: servem para transformar, transportar ou armazenar matéria ou energia. Por exemplo, um automóvel transporta matéria, um torno transforma matéria, uma usina hidroelétrica transforma a energia potencial da água em energia elétrica, uma bateria armazena energia elétrica, etc.

E o computador? Também tem essas funcionalidades, mas com algo que não é matéria nem energia: dados. Caracterizo dados como informações muito particulares, que podem ser introduzidas num computador e processadas por eles transformando seu conteúdo, não a forma.

Aqui é preciso distinguir o computador como máquina de armazenar textos, som ou vídeo, caso em que não difere fundamentalmente de um livro ou de um gravador (a menos da facilidade que pode proporcionar na busca). A grande distinção do computador acontece quando ele processa dados, pois isso é feito em uma matemática restrita, a algorítmica, que é um caso particular da lógica simbólica. Por exemplo ao se ativar esse iconezinho que estou vendo na 4ª linha da tela, contendo pequenas linhas de mesmo tamanho, o parágrafo em que estou trabalhando será alinhado verticalmente à esquerda e à direita. Para fazer isso, o computador processa o parágrafo linha a linha, encostando as palavras da esquerda para a direita, deixando entre cada duas consecutivas o mínimo espaço em branco estabelecido para a tela ou impressora. A seguir, conta quantos espaços sobraram à direita, e divide essa quantia pelo número de palavras da linha menos um, obtendo o número de espaços que deve ser inserido entre cada duas palavras.

Finalmente, cada palavra é movida caractere a caractere para sua posição definitiva, inserindo os espaços em branco antes da próxima palavra. Assim, o pobre usuário não está percebendo, mas ele está ativando uma função matemática. Qualquer comando que se dá para um computador, numa linguagem (eventualmente icônica) de controle de qualquer software, é na verdade parte de uma linguagem estritamente formal, que ativa funções matemáticas na lógica simbólica definida pelo computador.

Assim, se caracterizarmos as outras máquinas como concretas, pois atuam diretamente sobre algo - artificial ou não - da natureza, devemos caracterizar o computador como máquina abstrata. Ele trabalha com pensamentos que foram introduzidos dentro dele sob forma de instruções de um programa, de comandos de controle de um software, ou de dados. Jamais se deveria dizer que um computador pensa: o que ele faz é simular pensamentos restritos colocados dentro dele. A propósito, é justamente pelo fato de simular certos tipos de pensamentos que a CPU pode ser construída cada vez menor: experimente-se diminuir sucessivamente um automóvel ou um liquidificador para ver no que dá.

É daí que advém toda a MiCo. Por exemplo, é possível desenvolver-se um programa sem nenhuma disciplina e planejamento, simplesmente colocando-se nele instruções da linguagem de programação sem muito pensar. Obviamente, tal programa não vai funcionar. Não há problema, é só ir introduzindo nele remendos sem qualquer disciplina, testando-o consecutivamente até que passe a funcionar. Se são dois ou mais programadores, nesse momento ouve-se um grito: "não mexa mais!".

Sim, pois a verdade é que ninguém sabe qual o funcionamento de praticamente qualquer programa de porte razoável ativo hoje em dia, pois quase todos os programas foram elaborados, testados e remendados sem disciplina. Assim, qualquer alteração em um deles pode faze-lo deixar de funcionar. É essa a miserável origem do bug do ano 2.000: programas mal feitos e mal-documentados. Perdão pelo exagero, em geral não há documentação nenhuma, pois o computador simplesmente não usa a documentação para "executar" (a palavra correta é "interpretar") um programa; isto é, ela não é necessária.

Como comparação, alguém já viu um prédio projetado sem documentação? Se os programas-fonte tivessem sido preservados, e tivessem sido bem documentados, seria facílimo alterar todos os programas. Por exemplo, cada variável que contivesse uma data poderia ter seu identificador começando com a palavra Data, como Data_da_fatura.

O problema é que, por causa da MiCo, os programadores programaram indisciplinadamente e chamaram uma variável contendo data de, por exemplo, XYZ. Alís, uma das MiCos é que em geral as linguagens de programação, como (desculpem citar tanta miséria) C ou Pascal não têm o tipo primitivo "data" - Java tem pelo menos este, através de uma classe - e, aliás, nem o tipo "moeda", que provavelmente aparecem em 95% de todos os programas do mundo. Com isso, é necessário examinar cada programa e deduzir o que ele faz, para se descobrir quais XYZ contêm uma data...

Haja MiCO! O que nos leva a mais uma MiCo: é dificílimo e caríssimo descobrir o que faz um programa mal programado e mal documentado. E outra: o computador é a única máquina para a qual se pode projetar e com a qual se pode produzir coisas mal feitas (no caso, software) que funcionam.

Insistindo: compreendendo-se a essência de um computador, isto é, ser uma máquina abstrata e forçar um pensamento lógico-simbólico no usuário ou programador, pode-se entender a origem de todas as MiCos.

Mais um exemplo: se alguém faz musculação 8 horas por dia todos os dias úteis da semana, fica com um corpo de gorila (e provavelmente mentalidade também...). E se for forçado a pensar algoritmicamente, lógico-simbolicamente durante 8 horas por dia, como é o caso de um programador ou infeliz usuário constante de um computador? Aposto que não vai ficar com músculos no cérebro, mas também aposto que isso não passará em brancas nuvens.

Afinal, o ser humano incorpora todas as suas vivências (daí a violência na TV induzir atitudes agressivas, como já foi suficientemente provado). O resultado são alguns dos sintomas da SPD descritos no 1° parágrafo. Assim, por exemplo, anti-sociabilidade pode ser compreendida pelo fato de o computador ser uma máquina determinista, isto é, totalmente previsível (quando funciona direito), e as pessoas não.

Conjeturo que uma outra conseqüência, que noto em mim mesmo, é rigidez de pensamento, por exemplo compreendendo-se somente o que é formulado com coerência lógica.

Não me considero um neo-Luddita, isto é, alguém que quer destruir as máquinas. Creio que elas têm uma missão muito importante na história da humanidade: libertar-nos de forças naturais dentro e fora de nós. Por exemplo, com um avião eu posso ir para a Europa sem ter que nadar um tempão... Mas o que está acontecendo é justamente o contrário: as máquinas estão servindo para restringir a liberdade do ser humano, pois estão sendo mal usadas. Somente uma compreensão do seu funcionamento e de sua influência nos usuários e no meio-ambiente permitirá que se as coloque em seu devido lugar, isto é, que sirvam para elevar o ser humano e não degradá-lo.

No caso dos computadores, o importante é utilizá-los somente quando realmente necessário, não exagerando o seu uso, interrompendo-se o trabalho com eles de tempos em tempos, e tomando atitudes como forçar-se a si próprio a escrever inicialmente à mão para só depois digitar o texto. Assim, força-se o treino da enorme disciplina interior necessária para escrever-se com fluência sem muitas correções, pensando sobre a ortografia, usando o movimento harmonioso da escrita cursiva, etc.

Por outro lado, um editor de textos permite escrever-se de maneira totalmente indisciplinada, não havendo necessidade de se prestar atenção no fluxo das palavras e frases, e nem na ortografia. Posteriormente tudo poderá ser alterado e movido de lugar. Como pouca gente gosta de se enquadrar em regras e disciplinas, o editor acaba por induzir indisciplina mental. Se o uso de um computador é invevitável e não houver escapatória, é absolutamente necessário compensar os pensamentos secos, rígidos, mortos, impostos por ele, com uma verdadeira higiene mental. Creio que o antídoto correto para esses pensamentos é o exercício de atividades artísticas, onde se emprega um pensamento pleno de realidade e não-formal vinculado a sentimentos.

O mau uso com adultos tem conseqüências trágicas, mas quando se trata de crianças, a coisa fica catastrófica, pois o pensamento formal forçado pelo computador significa forçar a criança ou jovem a pensar e atuar como um adulto, acelerando indevida e unilateralmente seu desenvolvimento intelectual. Mas esse é um assunto para um outro artigo, não mais sobre a MiCo, mas sobre o CriCo, o Crime do Computador, que é cometido quando se permite a uma criança ou jovem adolescente usar essa máquina miserável, em qualquer aplicação.

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