Voltaire: A Serpente da Inveja

Dessa maneira exibia Zadig, todos os dias, a finura de sua índole e a bondade de sua alma; era admirado e amado.

Era tido como o mais afortunado dos homens; seu nome corria todo o império;todas as mulheres se extasiavam diante dele; todos os cidadãos lhe celebravam a justiça; os sábios o consideravam um oráculo; os próprios sacerdotes admitiam que ele sabia mais que o velho arquimago Yebor. Longe se estava agora de processá-lo por causa dos grifos; só se acreditava naquilo que ele julgava crível.

Havia em Babilônia uma grande discussão, a qual, tendo iniciado fazia 1.500 anos , ainda dividia o império em duas seitas irreconciliáveis: pretendia uma que nunca se deveria entrar no Templo de Mitra a não ser com o pé esquerdo; detestava a outra tal hábito, e só entrava com o pé direito. Estava o universo com os olhos fixos nos dois pés, e toda a cidade agitada e suspensa. Zadig entrou no templo saltando de pés juntos, e depois provou, numa eloquente oração, que ao Deus do céu e da Terra pouco lhes importa a perna esquerda ou a perna direita.

O invejoso e a mulher julgaram que no seu discurso não havia figuras suficientes, nem que fizera devidamente dançar os montes e as colinas.

_ É seco e sem inspiração - diziam. - Não se lhe vê nem o mar fugir, nem caírem as estrelas, nem o sol fundir-se como cera; falta-lhe o bom estilo.

Zadig contentava-se em possuir o estilo da razão. Todo mundo concordou com ele, não porque estivesse no bom caminho, não porque fosse razoável, ou amável, mas porque ele era o primeiro-ministro.

Com igual ventura se resolveu o grande processo entre os magos brancos e os magros negros. Sustentavam os brancos que, quando se rezava a Deus, era uma impiedade voltar-se para o oriente; asseguravam os negros que Deus tinha horror às orações dos homens que se voltavam para o ocidente. Zadig ordenou que cada qual se voltasse para onde bem entendessem.

Deu um jeito de despachar, na parte da manhã, os assuntos particulares e os gerais; destinava o resto do dia ao embelezamento de Babilônia: mandava representar tragédias que faziam chorar e comédias que faziam rir, o que havia muito passara de moda, mas a que o seu discernimento dera novo crédito. Não pretendia saber mais que os artistas. recompensava-os com benefícios e distinções, e não tinha inveja em segredo do seu talento. À noite, divertia muito o rei, e principalmente a rainha. Dizia o rei: "Que grande ministro!"; e a rainha: "Que amável ministro!", e ambos acrescentavam: "Que pena se o tivessem enforcado!".

Nunca um homem na sua posição fora obrigado a conceder tantas audiências às mulheres. A maioria vinha falar-lhe de problemas que não tinham, para arranjar algum com ele. A mulher do invejoso foi das primeiras que se apresentaram; jurou-lhe por Mitra, pelo Zend-Avesta e pelo fogo sagrado que havia sido contrária à atuação do marido; confiou-lhe depois que este era ciumento e bruto; deu-lhe a entender que os deuses o puniam recusando-lhe os preciosos efeitos desse fogo sagrado pelo qual o homem é semelhante aos imortais; acabou por deixar cair a liga; Zadig apanhou-a com a constumeira educação, porém não a prendeu ao joelho da dama; e essa pequena falta, se é que o era, foi causa dos mais terríveis infortúnios. Zadig não pensou mais no caso, mas a esposa do invejoso pensou muito.

Outras damas se apresentavam todos os dias. Relatam os documentos secretos de Babilônia que ele sucumbiu uma vez, mas muito se espantou de fazê-lo sem volúpia e abraçar a amante distraidamente. Aquela a quem dera, quase sem o notar, testemunhos da sua proteção era uma camareira da rainha Astartéia. Essa terna jovem pensava, para se consolar: "Que preocupações não terá esse homem na cabeça, para que sempre pense neles, até quando pratica o amor!" No momento em que muitas pessoas não dizem nada e outras só pronunciam palavras sagradas, Zadig havia exclamado de repente:

_ A rainha!

Julgou a moça que ele, finalmente, voltara a si num bom momento e que lhe dizia: "Minha rainha!". Mas Zadig, sempre absorto pronunciou o nome de Astartéia. A jovem, que, naquelas felizes circunstâncias, interpretava tudo em proveito seu, imaginou que aquilo queria dizer: "Você é mais bonita que a rainha Astartéia!". Saiu dos aposentos de Zadig repleta de bonitos presentes. Contou a aventura à invejosa, que era sua amiga íntima; esta se sentiu cruelmente ofendida com a preferência.

_ Ele nem se dignou - declarou ela - prender-me esta liga, que eu, por sinal, não quis mais usar.

_ Oh! Imagine! - disse a feliz jovem à invejosa, - Essas suas ligas são idênticas às da rainha! São feitas pela mesma costureira?

A invejosa ficou cismada, nada respondeu, e foi consultar seu marido, o invejoso.

Enquanto isso, Zadig se dava conta de suas contínuas distrações durante as audiências e julgamentos; não sabia a que atribuí-las: era esse o seu único cuidado.

Teve um sonho: parecia-lhe estar deitado sobre ervas secas, entre as quais algumas espinhosas, que o incomodavam, e que depois descansava suavemente num leito de rosas, de onde saía uma serpente que o feria no coração com sua língua aguda e peçonhenta. "Ai!", dizia ele, "bem sei que estive por muito tempo deitado naquelas ervas secas e espinhentas e agora me encontro num leito de rosas; mas que significado terá a serpente?"

Extraído de Contos - Voltaire

Comentários

Anônimo disse…
Olá. Prezado, gostaria de saber o que sabe sobre a empresa mencionada na postagem. Ela é uma empresa idônea? Esse alerta já foi removido há alguns anos. Estou para fazer negócios com essa empresa, porém gostaria de saber mais sobre ela. Obrigado e fico no aguardo.
Tato de Macedo disse…
Olá Anonymous,
da empresa mencionada sei, conforme exposto no texto, o que a CVM alertou e divulgou. Se for do seu interesse, sugiro consultar direto a CVM.

Abs

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