A Coisa e a Lei

VI - DA LEI MORAL


"Nem tudo que é moral, necessariamente está legal. Mas tudo que é legal deveria ser, obrigatoriamente, moral"
(Dalmo de Abreu Dallari - Jurista)


Mandemos entrar o simplório, façamo-lo sentar-se na primeira fila e perguntemos a ele o que Lacan quer dizer.

O simplório levanta-se, vem ao quadro e explica - Lacan nos fala desde o início do ano de das Ding nos seguintes termos - ele o coloca no âmago de um mundo subjetivo que é aquele cuja economia, segundo Freud, ele nos descreve há anos.

Esse mundo subjetivo define assim - o significante, misturando suas referências com as possibilidades de orientação que seu funcionamento de organismo natural de ser vivo lhe confere. (...)

Entendam bem isto - Kant convida-nos, quando consideramos a máxima que regula nossa ação, a considerá-la por um instante como a lei de uma natureza na qual seríamos convocados a viver. E esse, parece-lhe, o aparelho que nos fará repelir com horror essa ou aquela das máximas às quais nossos pendores de bom grado nos arrastariam.

Dá-nos exemplos a respeito disso, e não deixa de ser interessante tomar nota deles concretamente, pois, por mais evidentes que pareçam, podem prestar-se, pelo menos para o analista, a alguma reflexão. Mas observem que ele nos diz as leis de uma natureza, e não de uma sociedade.

É mais do que evidente que não apenas as sociedades vivem muito bem com referências a leis que estão longe de suportar o estabelecimento de uma aplicação universal; mas bem mais, como já lhes indiquei da última vez, é pela transgressão dessas máximas que as sociedades prosperam.

Trata-se portanto, da referência mental a uma natureza na medida em que esta é ordenada por leis de um objeto construído por ocasião da questão que nos colocamos sobre a matéria de nossa regra de conduta. Isso tem consequências notáveis, nas quais não vou entrar imediatamente.

Quero apenas aqui, para operar o efeito de choque, efeito de abrir os olhos, que me parece necessário no caminho de nosso progresso, fazê-los notar isto - se a Crítica da razão prática foi lançada em 1788, sete anos depois da primeira edição da Crítica da razão pura, há um outro livro que, este, foi lançado seis anos depois da Crítica da razão prática, mais ou menos nos dias que seguiram o Termidor, em 1795, e que se chama A Filosofia na alcova.

A Filosofia na alcova, como todos vocês devem saber, acho eu, é a obra de um certo Marquês de Sade, célebre por diversas razões. Sua celebridade de escândalo não deixou, no início, de acompanhar-se de grandes infortúnios, e, pode-se dizer, de abuso de poder cometido a seu respeito, pois ele também ficou no cativeiro uns vinte e cinco anos, o que é muito para alguém que, meu Deus, não cometeu, a nosso conhecimento, nenhum crime essencial, e que chega aos nossos dias, na ideologia de alguns, a tal ponto de promoção que se poderia também dizer que comporta, pelo menos, algo de confuso, senão de excessivo.

Ainda que possa passar, aos olhos de alguns, como que comportando a abertura para certos divertimentos, a obra do Marquês de Sade não é propriamente falando, das mais regozijantes, e as partes mais apreciadas podem parecer também as mais chatas. Mas não se pode pretender que lhe falte coerência e, em suma, são exatamente os critérios kantianos os que ela destaca para justificar as posições do que se pode chamar de uma espécie de antimoral.

Seu paradoxo é sustentado com a maior coerência nesse livro que se intitula A filosofia na alcova. Um pequeno trecho encontra-se aí incluído que, visto o conjunto dos olhos (ainda que imaginários, segundo um tal de Gilmar Dantas - segundo um outro chamado Noblat -, esse parêntese por conta deste que sobrescreve) que lêem, é o único que recomendo expressamente a leitura - Franceses, mais um esforço para serem republicanos.

Após esse apelo, suposto ser colhido por um movimento de folhetos que se agitam nesse momento na Paris revolucionária, o Marquês de Sade nos propõe como máxima universal de nossa conduta, visto o que, nas premissas desse livro, consiste a ruína das autoridades, o advento de uma verdadeira república, o contrário do que pôde ser até então considerado como o mínimo vital de uma vida moral viável e coerente.

E, na verdade, ele não sustenta nada mal isso. Não é absolutamente por acaso que encontramos inicialmente na Filosofia na alcova um elogio da calúnia. A calúnia, diz-nos ele, não poderia, em nenhum caso, ser nociva - sê-la imputa a nosso próximo algo muito pior do que se pode com razão atribuir-lhe, ela tem por mérito alertar-nos contra suas empreitadas. E prossegue deste modo, justificando ponto por ponto o derrubamento dos imperativos fundamentais da lei moral, e preconizando o incesto, o adultério, o roubo e tudo o que vocês podem acrescentar. Peguem o contrário de todas as leis do Decálogo e terão a exposição coerente de algo cujo móvel final articula-se em suma assim - Tomemos como máxima universal de nossa ação o direito de gozar de outrem, quem quer que seja, como instrumento de nosso prazer.

Sade demonstra, como muita coerência, que, uma vez universalizada essa lei, se ela confere aos libertinos a livre disposição de todas as mulheres indistintamente, consentindo elas ou não, libera-as inversamente de todos os deveres que uma sociedade civilizada lhes impõe em suas relações conjugais, matrimoniais e outras. Essa concepção abre todas as comportas que ele propõe imaginariamente no horizonte do desejo, cada um sendo solicitado a levar a seu extremo as exigências de sua cobiça e de realizá-las.

Se a mesma abertura é dada a todos, ver-se-á o que será uma sociedade natural. Nossa repugnância pode ser legitimamente assimilada ao que Kant, ele mesmo pretende eliminar dos critérios da ação moral, ou seja, a um elemento sentimental.
  • Se é eliminado da moral todo elemento de sentimento, se no-lo retiram, se se invalida todo guia que exista em nosso sentimento, de modo extremo o mundo sadista é concebível - mesmo que ele seja seu avesso e sua caricatura - como uma das efetivações possíveis do mundo governado por uma ética radical, pela ética kantiana tal como ela se inscreve em 1788.
Creiam-me, não faltam ressonâncias kantianas nas tentativas de articulação moral que se encontra numa vasta literatura que podemos chamar de libertina, a do homem do prazer, que é uma forma igualmente caricatural deste problema que durante tanto tempo preocupou o Antigo Regime ao longo dos tempos, e isto, desde Fénelon - a educação das meninas. Vocês vêem isso levado até as suas mais humoristicamente paradoxais consequências em A cortina levantada de Mirabeau.

Pois bem, tocamos aqui naquilo pela qual, em sua busca de justificação, de assentamento, de apoio, no sentido da referência ao princípio de realidade, a ética encontra seu próprio impedimento, seu fracasso - quero dizer, onde explode uma aporia da articulação mental que se chama ética.

Da mesma forma que a ética kantiana não tem outra continuação senão esse exercício ginástico, cuja função formadora para todo aquele que pensa já fiz vocês notarem, da mesma forma a ética sadista não teve espécie alguma de continuação social.

Entendam bem que não sei se os franceses fizeram verdadeiramente um esforço para serem republicanos, mas seguramente, assim como os outros povos da terra, e mesmo aqueles que fizeram depois deles revoluções ainda mais atrevidas, mais ambiciosas, mais radicais ainda, deixaram estritamente intactas as bases, que eu qualificaria de religiosas, dos dez mandamentos, levando-os mesmo até um grau em que a denotação puritana se vai acusando cada vez mais.

Chegou-se ao ponto em que um chefe de um grande Estado socialista em visita às civilizações coexistentes, escandaliza-se ao ver às margens do oceano Pacífico as dançarinas do nobre país da América levantarem a perna um pouco alto demais.

Encontramo-nos aí, contudo, diante de uma questão - precisamente a questão da relação com das Ding.

Essa relação parece-me, também suficientemente ressaltada no terceiro capítulo que concerne aos móveis da razão pura prática. Com efeito, Kant admite, contudo, um correlato sentimental da lei moral em sua pureza, e, mui singularmente, rogo-lhes que anotem isto, segundo parágrafo dessa terceira parte -, não é outra coisa senão a própria dor. Leio-lhes a passagem:

_ Por conseguinte, podemos ver a priori que a lei moral como princípio de determinação da vontade, pela mesma razão que ela causa danos a todas as nossas inclinações, deve produzir um sentimento que pode ser chamado de dor. E é esse aqui o primeiro, e talvez o único caso em que nos seja permitido determinar, por conceitos a priori, a relação de um conhecimento, que vem deste modo da razão pura prática, com o sentimento do prazer ou do penar.


Em suma, Kant tem a mesma opinião de Sade. Pois, para atingir absolutamente das Ding, para abrir todas as comportas do desejo, o que Sade nos mostra no horizonte? Essencialmente a dor.

A dor de outrem e, igualmente, a dor própria do sujeito, pois são, no caso, apenas uma só e mesma coisa. O extremo do prazer, na medida em que consistem em forçar o lado derrisório, o lado - para empregar um termo popular - maníaco que salta a nossos olhos nas construções romanceadas de um Sade - a cada instante se manifesta o mal-estar da construção viva, exatamente isso que torna tão difícil, para nossos neuróticos habitantes dos palácios, a confissão de algumas de suas fantasias.
Le Séminaire de Jacques Lacan
Léthique de la pshychanalyse

Comentários:
  1. As fantasias, com efeito, num certo grau, num certo limite, não suportam a revelação da fala.
  2. Mais, o indivíduo quando fala pode estar querendo dizer outra coisa que não aquilo que falou, e quando tenta negar, reafirma o que não quiz dizer, dizendo.
  3. E, pior, quando não diz, nas entrelinhas, fica ainda mais evidente suas contradições, que as digam as duas mais recentes apresentações "espetacularizadas" compostas pelas bancadas de um certo roda morta.
  4. Um que por pura melancolia neurótica e sádica alegando espetacularização em círculo inferior abstém-se de toda e qualquer legitimidade legal e moral e coloca-se, ele próprio, no centro da espetacularização rídicula e desprovida de qualquer sentido.
  5. Noutro, as faces mais que reveladoras das falas, da inquisição, do pavor de serem reconhecidas publicamente suas orgias com o nosso marquês, ausente, no centro da roda viva.

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