Mujica pode ser o novo presidente do Urugai

Assaltar o poder com os canhões da inteligência”
José “Pepe” Mujica é escolhido candidato da Frente Ampla à presidência do Uruguai
O senador José "Pepe" Mujica foi escolhido ontem no Congresso da Frente Ampla para ser candidato à presidência do Uruguai, nas eleições que serão realizadas em outubro de 2009. Ex-líder guerrilheiro tupamaro, Mujica recebeu o voto de mais de dois terços dos delegados que participaram da eleição interna da Frente Ampla. Confira a entrevista que o senador concedeu à Carta Maior em fevereiro de 2005, durante a posse do presidente Tabaré Vázquez.


O principal objetivo estratégico da esquerda uruguaia e latino-americana deve ser assaltar o poder com os canhões da inteligência e do conhecimento, defende o senador e ministro José Pepe Mujica, na segunda parte da entrevista exclusiva à Agência Carta Maior.

Por Marco Aurélio Weissheimer

Montevidéu – Na segunda parte da entrevista exclusiva à Agência Carta Maior, o senador e ministro uruguaio, José Pepe Mujica, define aquele que acredita ser o principal objetivo estratégico da esquerda uruguaia e latino-americana: assaltar o poder com os canhões da inteligência. Para o ex-guerrilheiro tupamaro, “poderemos andar de alpargatas, com roupas remendadas, o que queremos é meter coisas na cabeça”. “Ou fazemos isso, ou fracassamos”, resume. A verdadeira prioridade, defende Pepe Mujica, “é acumular coisas na cabeça, principalmente na cabeça de nossos filhos, em nossos países subdesenvolvidos”. “É preferível que vivam com certas dificuldades materiais, mas tenham vantagem na cabeça, vantagem de conhecimento”.

O líder político uruguaio também identifica o que considera ser uma das principais deficiências da esquerda hoje: a perda da dimensão estratégica da disputa política. “Não creio que se possa criar uma sociedade melhor, com uma população analfabeta ou quase analfabeta, embrutecida no campo do conhecimento e da vida. Não se pode criar uma sociedade melhor com um povo primitivo e bárbaro, embrutecido. Nisso estou mais perto do velho Marx do que de Lênin. A esquerda tem que resolver esse problema. Ela tem o mau hábito de crescer e perder de vista o pensamento estratégico, ficando imersa em movimentos táticos, perdendo a capacidade de pensar”.

CM - No Brasil, setores do PT diziam até bem pouco tempo que o governo Lula estava em disputa, particularmente no que diz respeito à sua política econômica. Agora, quase não se diz mais isso, com a consolidação da linha implementada pelo Banco Central e pelo Ministério da Fazenda. Aqui, no Uruguai, já há artigos na imprensa dizendo que o governo Tabaré começa em disputa. Você crê que esse governo está em disputa?
PM - É evidente que nós temos, dentro do governo, pontos de vista diferentes. Mas não se preocupem muito. Nós somos um país financiável, o Brasil não.

Os nossos problemas econômicos são graves pelas dimensões do Uruguai. E são graves porque não fizemos nada, não causamos incômodo a ninguém. Temos um problema de mercado. Temos uma economia complementar com a região, particularmente com o Brasil.

Nós não queremos entrar no Brasil. Se conseguirmos fazer nosso mercado chegar um pouco a São Paulo, aí já acabou o Uruguai, já comercializamos o que temos. Temos que mudar nossa política também.

Somente em juros da dívida, pagamos por ano tudo o que pagamos aos servidores públicos, mais duas vezes os gastos com educação. Somente para pagar os juros. Isso é muitíssimo. Na verdade, não estamos pagando essa dívida. Nós fazemos de conta que pagamos e eles fazem de conta que nos cobram. E por aí vamos. Aplicando números, negociando. É um teatro. Essa dívida é impagável.

O Uruguai este ano exportou bem, chegou a 3,5 bilhões de dólares, um recorde. Nossa conta de juros é de 700 milhões de dólares por ano. Pagamos mais em juros do que combustíveis. E só estamos falando de juros, não do principal da dívida. Então, estamos atados a isso. E me vejo velho, gritando contra o Fundo Monetário Internacional. Mas isso não muda. A gente grita, mas o Fundo continua igual, está aí.

O que é preciso mudar é a nossa postura. Porque a mim, nunca colocaram um 45 na cabeça, obrigando que eu pedisse dinheiro emprestado. O problema é que estamos educados a pedir emprestado quando enfrentamos dificuldades. E eles, generosamente, nos emprestam. Não conseguiremos mudar o mundo com gritos, o que é preciso mudar em primeiro lugar é a nossa conduta.

O dia em que aprendermos a viver com o que temos, estaremos livres. Não temos que mudar o Fundo, nós é que temos que mudar.

Agora, os problemas são de curto prazo e é preciso fazer algo já. Nós chegamos ao poder e temos que lidar com essas restrições fiscais, orçamentárias e tudo o mais, e acabamos nos transformando em administradores da crise global do sistema.

Eu sei que há uma tragédia nisso, para nós que somos de esquerda. Eu sei bem. É muito o que está em jogo no Brasil, por exemplo. É toda a nossa sorte que está em jogo. Estou absolutamente consciente disso.

CM - Como você pensa que as forças conservadoras vão reagir aqui no Uruguai, diante do novo governo, afinal de contas, pela primeira vez na história do país, elas estão fora do poder? Alguns editoriais de jornais uruguaios já pressionam o governo a manter a responsabilidade fiscal e a política econômica atual, de um modo similar ao que ocorreu no Brasil, no início do governo Lula. Como você vê este quadro?
PM - Sim, o déficit fiscal e a inflação são fantasmas comuns que nos cercam por todos os lados. Creio que a direita mais inteligente vai jogar um jogo de tratar de fortalecer, em todos os sentidos, nossas imagens internas mais suaves e racionais. Em lugar de uma oposição frontal, vão tratar de posicionar-se lateralmente.

Nós podemos cair neste jogo e nos situarmos mais à direita, dando origem a uma nova tecnocracia mais moderna, o que, do ponto vista essencial, segue sendo o mesmo que vinha sendo feito. Esse, creio, é o papel que vai ser desempenhado pela direita inteligente.

Depois tem a direita burra, fascistóide, essa não vai jogar nenhum papel, não há espaço para ela. O Uruguai é um país de uma política muito fina, muito sutil.

CM - Na sua avaliação, quais devem ser os principais objetivos estratégicos do governo Tabaré Vázquez?
PM - O problema central que temos que resolver é o trabalho, que é um fator de estabilidade fundamental. Se não resolvermos esse problema, fracassaremos.

No início, vamos organizar algumas operações emergenciais, o que não deixa de ser uma medida um pouco economicista, pelas características do Uruguai. Se você dá alguma ajuda a quem não tem o que comer, a nossa economia se mobiliza desde baixo, porque é um país produtor de alimentos. Mas isso tem pernas curtas.

Alguns acreditam que vamos terminar com a miséria em dois anos. Nenhum país jamais conseguiu isso. Eu baixo a cabeça quando escuto isso. Mas a esquerda sempre teve muita gente assim, ingênua.

O que temos que priorizar é o problema do trabalho, utilizando todos os instrumentos que estiverem ao nosso alcance, aproveitando os mecanismos mais heterodoxos que podem existir. O nosso problema é gerar trabalho, mas trabalho autêntico, que gere algum valor, que tenha um mínimo de produtividade. Não se trata de ficar abrindo poços, empregando algumas pessoas para abri-los e outras para fechá-los.

CM - Isso quer dizer que vocês não pensam em políticas compensatórias, algo como dar ajuda em dinheiro para a população?
PM - Não, nós acreditamos que é preciso pedir contrapartidas. Sempre é preciso pedir contrapartidas. Se não implementarmos mecanismos que gerem valor, estamos fritos.

O Uruguai passa por uma crise brutal que exige isso. Temos que utilizar enormemente a nossa capacidade ociosa. Utilizar bem nossos recursos não é um problema de honradez, é a única margem de disponibilidade que temos. Temos que nos mover com os mesmos recursos que temos hoje e gerar valor e riqueza através deles.

Podemos ter a favor, neste processo, um sistema compensatório com a região, uma política mais decente com a região. Durante muitos anos tivemos uma política de comércio superavitário com o Brasil, antes da desvalorização do real (no início do segundo governo FHC). Depois, passamos a comprar produtos da Coréia, do Japão. Assim não é possível.

É preciso ser um pouco mais decente. O comércio é uma guerra, mas creio que há vento a favor para termos uma política mais articulada na região. Caso contrário, não iremos a lugar nenhum.

Por outro lado, creio que não é possível fazer transformações relativamente importantes antes de 15 ou 20 anos. Para isso, é preciso conquistar o direito de que as pessoas nos respaldem. Há muitas coisas para mudar e estamos muito limitados.

Necessitamos de mudanças no mundo também. É preciso ter a capacidade de resistir, esperando que as coisas comecem a mudar em nível mundial, o que ninguém sabe quando pode acontecer. Vivemos em mundo unipolar, o que significa limites enormes.

Os chineses, por exemplo, não têm pressa, eles têm muita paciência, sempre tiveram. Precisamos ter alguma alternativa. Quando me referi à política externa do governo Lula, que me parece muito correta, de buscar uma aproximação com a Índia, a China e outros mercados, estava dizendo que esse é um dos caminhos que devemos perseguir. Se não, estamos ferrados.

O que mais me assusta, na verdade, é a desvantagem tecnológica que sofremos. O recurso mais inesgotável que existe é a inteligência humana. A grande batalha que devemos enfrentar não é a batalha da propriedade, mas sim da propriedade da inteligência. Daí também a importância que tem o Brasil, pela estatura que tem.

Trata-se de uma batalha no campo da universidade, no campo do conhecimento, no campo da geração de conhecimento próprio. Se não conseguimos nos libertar um pouco no campo do conhecimento, estamos quebrados. Essa é a tragédia que vivemos.

CM - A partir do dia 1° de março, você passa a ser ministro da Pecuária, Agricultura e Pesca. Por onde pensa começar?
PM - Já começamos há muito tempo. Chegamos aonde chegamos porque já começamos a pensar nisso há bastante tempo. Se Roma não vem a mim, tenho que ir a Roma.

A esquerda chegou ao governo porque entendeu isso. Há mais de dez anos, começamos essa caminhada, indo conversar com os produtores. Em princípio, olhavam-nos como sapos de outro poço, como extraterrestres. Esse trabalho foi muito custoso. O Uruguai é um país de pecuária.

Vocês não se esqueçam que o Uruguai tem 3,2 milhões de habitantes e 12 milhões de vacas e agora estamos ferrados, temos também dez milhões de ovelhas. Este é o país real.

Temos duas mil empresas que são donas da metade do país. São os tipos mais patriotas do país, são os que têm mais pátria, mais quantidade de solo. Em parte, são eles o poder real. Mas estão perdendo a tradição, já não são o que foram. Então, eles, em parte, também precisam de nós. Estão ameaçados de ser expropriados pelas empresas maiores que vêm de fora, pelas multinacionais que estão comprando terras, plantando árvores e tudo o mais.

Então, creio que eles vão nos apoiar. Creio que não reside o problema. Creio que teremos problemas com o sistema financeiro, com o sistema importador e, em parte, com o aparato policial e não com o aparato militar.

No interior rural, temos planos para seguir avançando. Vamos tentar, dentro das leis do sistema capitalista. Vamos pedir aos burgueses que trabalhem, não que sejam socialistas. Queremos que eles trabalhem, invistam e se endividem menos. Não vamos pedir o que eles não podem dar.

Hoje estamos falando disso. Não dou a mínima para essa tese do fim da história. É o fim da minha geração, do meu tempo. Mas eu também mudei a minha maneira de pensar. Antes pensava que, mudando as relações de produção e as relações de propriedade, se mudava a humanidade.

Depois do que se passou neste mundo, temos um problema que vai além da questão de classe, temos um problema com a civilização, que é uma outra história. Em certa medida, sou mais radical hoje do que antes.

Certa vez estive em uma universidade no bloco socialista e alguns estudantes queriam me comprar uma camisa de nylon, uma porcaria insuportável de calor. Mas os estudantes do pólo soviético jamais tinham visto uma camisa de nylon e estavam deslumbrados com aquela porcaria. Eles tinham ficado com os mesmos valores do sistema que diziam combater.

Então, creio que o problema cultural, o problema do pensamento é muito mais importante. Não há nenhuma mudança no campo material se não há mudança na cabeça. E as mudanças na cabeça são as mais custosas e difíceis. É isso que penso.

CM - Como você avalia que será a relação do novo governo com a imprensa uruguaia? Você acredita que pode haver algum tipo de confronto?
PM - A imprensa no Uruguai está nas mãos, essencialmente, da direita. Do ponto de vista empresarial, dependem muito das verbas de propaganda do Estado. Eles têm os seus problemas. Não creio que eles vão complicar a nossa vida.

A esquerda não tem imprensa. Tem uma imprensa raquítica. Os grandes meios estão nas mãos da direita. Desde este ponto de vista, talvez tenhamos algumas dores de cabeça. Temos alguns estudos sobre a possibilidade de redistribuir espaços de televisão e rádio e utilizar alguns meios que já pertencem ao Estado.

Temos um canal de televisão que chega a todo o país e que está subutilizado e tem um potencial importante. Aí temos um campo de batalha. O mais curioso é que a imensa maioria dos trabalhadores da imprensa são de esquerda e trabalham nos meios da direita. É assim.

Creio que os meios de comunicação têm cada vez mais importância e que aí há uma batalha no campo da opinião que é cada vez mais decisiva. A esquerda não deve dar vantagem à direita neste campo, mas desgraçadamente se preocupa muito pouco com esse problema. No lugar de ter uma rádio potente compramos um galpão, ou algo do tipo.

CM - Uma pergunta final, o governo brasileiro vem implementando uma política externa que vem sendo reconhecida internacionalmente como algo novo. Como você vê a questão da integração política, econômica e cultural do continente?
PM - Creio que a questão cultural é fundamental. Não devemos reduzir a cultura a alguns espetáculos, programas de televisão, etc. Este é o mercado da cultura. A cultura é elaborar um pensamento próprio. Precisamos de universidades comuns, de investigações comuns. Precisamos nos especializar em algumas coisas. Nós tivemos agora uma batalha para tirar o reitor da universidade de ciências e colocá-lo como candidato a prefeito de Montevidéu.

Porque queremos assaltar o poder com os canhões da inteligência. Neste país, poderemos andar de alpargatas, com roupas remendadas, o que queremos é meter coisas na cabeça. Ou fazemos isso, ou fracassamos.

Vivemos em uma sociedade consumista. Tudo tem a mesma prioridade, que é consumir. E a verdadeira prioridade é acumular coisas na cabeça, principalmente na cabeça de nossos filhos, em nossos países subdesenvolvidos.

É preferível que vivam com certas dificuldades materiais, mas tenham vantagem na cabeça, vantagem de conhecimento. Eu acredito no socialismo como uma necessidade de caráter histórico, porque senão o mundo vai se ir para a merda.

Mas não creio que se possa criar uma sociedade melhor, com uma população analfabeta ou quase analfabeta, embrutecida no campo do conhecimento e da vida. Não se pode criar uma sociedade melhor com um povo primitivo e bárbaro, embrutecido.

Nisso estou mais perto do velho Marx do que de Lênin. A esquerda tem que resolver esse problema. Ela tem o mau hábito de crescer e perder de vista o pensamento estratégico, ficando imersa em movimentos táticos, perdendo a capacidade de pensar.

Se vamos ter sociedades idiotizadas por maus programas de televisão, onde o sujeito começa a vê-los às três da tarde, sem nenhuma capacidade crítica sobre o que está vendo, estamos fritos. Estamos fritos.

Aí estão os Estados Unidos, a sociedade mais tonta que existe, que faz política com as mesmas técnicas que se vende pasta de dente, que vende um candidato a presidente do mesmo modo que vende uma camisa. Se isso é o progresso, Deus me livre dele.

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