Rota 66 - A História da Polícia que Mata, por Caco Barcellos

 O apêndice que dá sustenção à pirâmide
 Caco Barcellos põe o Dedo na ferida

O mais respeitado repórter de polícia do país, autor de um livro – Rota 66 – que abalou os alicerces da PM paulista, diz nesta entrevista tudo o que sabe e pensa sobre o brasileiro, hoje o segundo povo mais violento do mundo.

Sérgio Pinto de Almeida - Caco, a tortura é uma prática institucionalizada na polícia brasileira?
Caco Barcellos - Sem dúvida, é uma prática predominante.

Sérgio Pinto de Almeida - Quer dizer, não existe polícia científica, é pau?
Caco Barcellos - É pau ainda. O que mostra que, além de violentos, são preguiçosos, não gostam de trabalhar.

Bob Fernandes - E essa esperança nos jovens delegados, advogados etc., que parecem ser outra coisa, eles acabam sendo engolidos ou...?
Caco Barcellos - Eu acho que há uma outra coisa mesmo, uma esperança de nova mentalidade entrando na Polícia Civil aqui em São Paulo. Acontece que o país é imenso, e longe daqui isto não acontece. Mesmo aqui acho que eles ainda são uma minoria.

Roberto Freire - Eu senti no seu livro, Rota 66, que a Polícia Militar teria herdado essa violência toda daquele período em que eles tinham todo o poder, depois de 1964.
Caco Barcellos - Sem dúvida, eles herdaram essa sistemática, e a Rota não é diferente das outras PMs do Brasil.

Bob Fernandes - Herdou com manual e tudo, não é?
Caco Barcellos - Não, mais pela prática mesmo. Se você analisar, o próprio noticiário da imprensa já revela isso.

Bob Fernandes - A Força Pública não se tornou um apêndice, coisa que não era antes?
Caco Barcellos - Sim, houve a fusão da antiga Força Pública com a Guarda Civil, não é?

Marina Amaral - Quando fundiram é que começam as pesquisas do Rota 66, não é?
Caco Barcellos - Foi, exatamente, 1970.

Marina Amaral - Você fala no livro que não ia acabar com aquele banco de dados enquanto houvesse um policial militar matando. Você manteve a promessa?
Caco Barcellos - Eu mantenho, mas muito relaxadamente. Agora fico pensando assim: como demorei sete anos pra fazer aquela pesquisa, nada impede que daqui a um tempo retome. Mas estou sempre atento ao volume de pessoas que eles matam.

Marina Amaral - Você acha que houve alguma mudança significativa?
Caco Barcellos - No lançamento do livro, naquele ano, eles estavam matando 1.500 pessoas. No ano passado mataram 180. Então, eu acho que não é tão preocupante. Se eu tivesse de fazer o Rota 66 hoje, seria com o BOP setenta não sei o que, que é o Batalhão de Operações Especiais da Polícia do Rio de Janeiro.

Chico Vasconcellos - É o mais violento hoje no Brasil?
Caco Barcellos - Está fazendo hoje o que a Rota fazia em São Paulo.

Marina Amaral - E com ligação com o narcotráfico, porque na Rota havia essa ligação, ou não?Caco Barcellos - Não, não acho, tenho certeza de que é orientação do Estado, como era aqui. Esquadrão da Morte oficializado.

João Noro - O fato de ter Polícia Militar, Polícia Civil e Polícia Municipal, nenhuma delas resolveu nenhum problema, caminha pra alguma solução?
Caco Barcellos - Pra mim, tanto faz se é militar ou é civil, o importante é a filosofia que emprega no patrulhamento, sobretudo o urbano, o das grandes cidades. Enquanto não mudarem esse critério de priorizar a defesa do patrimônio e não a defesa da vida, acho que nada vai se alterar. Não gosto de fazer denúncia relacionada com o crime contra o patrimônio porque a sociedade, a chamada formadora de opinião, classe média, os privilegiados adoram que a polícia seja dessa maneira.

Chico Vasconcellos - Você acha que ela quer que a polícia seja corrupta, para ela é bom?
Caco Barcellos - É maravilhoso para quem, por exemplo, é preso com cocaína. Ele sabe que pode comprar a impunidade facilmente, por uma tabela, várias delegacias têm tabela. Se você comete uma contravenção grave no trânsito, com um bom advogado você conduz mais ou menos aquilo que você quer naquele processo.

Chico Vasconcellos - É saudável para este Estado que está aí que a polícia seja corrupta?
Caco Barcellos - Claro, se não fosse, ela mudaria rapidamente, a classe média a mudaria, os formadores de opinião a mudariam. Mesmo que o camarada seja punido, ainda há o privilégio da prisão especial, que eu acho um absurdo. O camarada tem todas as condições pra não se envolver num crime, ou pelo menos está bem mais preparado para não se envolver, tem melhores condições de berço até, e ainda assim tem esse privilégio da prisão especial, na hora de cumprir a pena. Enquanto o camarada que não tem grana pra contratar um advogado, ou não tem formação universitária, geralmente é gente pobre, acaba sendo punido com a prisão medieval.

Roberto Freire - Prisão especial é só pra quem tem nível universitário?
Caco Barcellos - Universitário. Eu acho que tem um outro componente: o brasileiro é o segundo povo mais violento do mundo.

Bob Fernandes - Na média dos últimos seis anos, na Grande São Paulo são 8.000 mortes por ano; em seis anos dá um Vietnã.
Caco Barcellos - No Rio, também são por volta de 8.000 mortos por ano. Em São Paulo já chegou a 10.000, ...

Bob Fernandes - Você fala, as pessoa falam e a gente parece que não percebe a dimensão que isso tem.
Caco Barcellos - E, veja bem, é o cidadão comum que está matando em massa, não é o assaltante... O assaltante mata 400 por ano, 350, 400, 450. É o cidadão comum que está matando mais. É claro que tem guerra entre quadrilha também, mas o patrimônio não está envolvido naquelas mortes.

Bob Fernandes - Tem um estudo do José Roberto de Toledo, da Folha de S. Paulo, que diz que este é um crime basicamente de São Paulo, da ausência da alternativa de lazer no fim de semana. O cara vai, toma pinga no bar, não sei o que...
Caco Barcellos - Acho que tem muito a ver com o álcool. A delegacia de homicídios, que consegue esclarecer 40 por cento dos homicídios, fala em crack também. Só que o universo de apuração deles é muito pequeno, de cada dez esclarecem quatro, três.

João Noro - Homicídios...
Caco Barcellos - Homicídio, não, latrocínio. Veja bem, quando o cara é mal-intencionado, quer divulgar que o bandido tem de morrer... sobretudo os coronéis da PM, adoram pegar o dado do homicídio e jogar nas costas do latrocínio, do assaltante. Quando morre alguém na periferia, um número frio, eles colocam na guerra do bandido, e é totalmente diferente.

Sérgio de Souza - Você falou que o brasileiro era o segundo mais violento?
Caco Barcellos - O primeiro do mundo é o colombiano. Veja bem, esses dados são das Nações Unidas, não sei se são exatamente confiáveis. Tem um bairro aqui em São Paulo que tem um índice superior ao de Medellín, que é a primeira do mundo, um bairro só...

Sérgio Souza - É aquele onde não entra caminhão de gás, parece que não entra Casas Bahia...?Caco Barcellos - Não, até entra. É na região do Campo Limpo. Jardim das Oliveiras.

Marina Amaral - Esse BOP é um fenômeno carioca, tem a ver com todo esse problema que o Rio passou, de todos esses anos de criminalidade, que a população se uniu e...
Caco Barcellos - Acho que tem a ver com a histeria da mídia contra o Rio de Janeiro. No final do governo Brizola, a sociedade não suportava mais aquela violência, que era "culpa da associação", segundo essa histeria, "do Brizola com tráfico", que teria tornado o Rio de Janeiro insuportável, e estava exigindo providências. Aí houve aquela invasão do Exército, legitimada pela histeria coletiva.

Marina Amaral - A gente vê que no Rota 66 há influência de todo esse passado de repressão política e tal. Essa polícia agora, do Rio, como surgiu?
Caco Barcellos - Acho que é o componente político que determina isso, é a política de segurança do governo do Marcelo Alencar, quer dizer, em sintonia com o clamor público, da imprensa, sem dúvida. Veja bem, ele equipou a polícia como nunca, você tem lá Santana com equipamento de bordo, tecnologia de ponta, computador, o diabo, mas policiando a Zona Sul, que realmente se tornou supersegura hoje. Você pode andar a qualquer hora do dia ou da noite em Ipanema, Leblon, Copacabana. Copacabana é uma área complicada com prostituição, a avenida Atlântica, acho que você ainda corre o risco de ser atacado com um canivete no pescoço, mas fora dali, daquela área que tem as árvores, você circula sem perigo, é superbem iluminada a cidade, as obras todas estão feitas pelo prefeito, também na Zona Sul. Está superpoliciado ali, em prejuízo do policiamento onde está a maioria da população, na Zona Norte. A imprensa também se comporta dessa forma, ela não gosta de cruzar o túnel Rebouças.

Sérgio de Souza - Como funciona o BOP?
Caco Barcellos - O BOP é diferente da polícia daqui, eles não são sistemáticos como era o pessoal da Rota. Eles têm uma grande influência da "mineira", como eles chamam. Não assumem o cadáver. Aqui tem esta vantagem, entre aspas, de o policial assumir o que faz, lá não assume. Deixa o cadáver na viela...

Sérgio de Souza - Como se organiza o poder desse grupo, quem comanda, qual o sistema?
Caco Barcellos - Em primeiro lugar, com a mídia apoiando. E sobretudo a geografia da ação é fundamental, atacam onde não há cidadania, os morros cariocas. Principalmente os morros onde o tráfico responde a bala. Onde responde a bala o número de vítimas costuma se elevar. Os traficantes se queixam pra caramba desse tipo de ação. E, veja bem, você constata isso até no comportamento da turma miúda, no P2, que é o secreta da PM. Eles falam abertamente pela rua: "liberou geral", pode passar o rodo que tem respaldo.

Bob Fernandes - Vai lá e mata que não dá nada, é isso?
Caco Barcellos - Oficialmente diz que não, embora o secretário de Segurança do Rio afirme que bandido bom é bandido morto.

Carlos Carlos Azevedo - Esse batalhão surgiu depois que o Cerqueira tomou posse?
Caco Barcellos - Não, já existia, fazia operações não oficiais. Quando a antiga Secretaria de Segurança Pública proibiu que o helicóptero descesse ao nível muito próximo de barracos, metralhando, eles ficaram muito bravos. Diziam que estavam "com as mão amarradas", não podiam mais agir e tal. No governo anterior, também foram impedidos de agir sem mandado de segurança. A PM ficou proibida de subir o morro sem mandado, como acontece na zona nobre da cidade. Eles se queixavam demais disso. Por conta dessas duas proibições do Brizola, eles diziam que era impossível combater a bandidagem. Mas o BOP conseguia fazer suas ações clandestinamente. O pessoal da Civil que combate drogas também fazia ações clandestinas, não autorizadas pela Secretaria de Segurança Pública, e promovia aqueles tiroteios que a imprensa adora acompanhar, subir morro atirando pra cima... Tem um 9¼ Batalhão lá que é famoso por passar rodo nos morros.

Sérgio Pinto de Almeida - Apesar do clamor da mídia, da histeria etc., o Brizola tem culpa no cartório?
Caco Barcellos - Acho que não. Veja bem, ele é um cara que sem dúvida é odiado pelo empresariado, pelos militares, pelos banqueiros, por boa parte da mídia e tal... alguém teria descoberto. Você diz ações ilegais, corrupção?

Sérgio Pinto de Almeida - Se ele fez uma má gestão na área de segurança pública, que tenha facilitado...
Caco Barcellos - Não, não acho que ele fez uma má gestão. O que ele realmente fez, e deve ter beneficiado a bandidagem dos morros, é isso, exigir respeito à cidadania lá em cima também - como se respeita no Leblon, Ipanema.

Bob Fernandes - Ônibus ligando a Zona Norte à Zona Sul, por exemplo, evidentemente facilitou o acesso à praia.
Caco Barcellos - O da Zona Sul acha que a praia é dele, e não é isso. O negrão na periferia não pode, o pobre da periferia "suja" a praia, essa ligação zona norte/zona sul enchendo de pobreza a areia...

Sérgio Pinto de Almeida - A oposição ao Brizola não poderia incentivar a violência, usar mecanismos que criassem a histeria social?
Caco Barcellos - Existiam atentados praticados pela própria polícia, contra escolas, por exemplo.

Bob Fernandes - Arrastão filmado desde o princípio, como é que alguém sabe que vai ter um arrastão, a tal hora?
Caco Barcellos - É, e no arrastão entra uma coisa curiosa: não tem um registro em delegacia de polícia de pessoas lesadas, assaltadas ou feridas. E os atentados contra as delegacias eram uma coisa muito louca, porque parecia, como era divulgado antes, que eram os traficantes em guerra com a polícia. Guerra que acabou depois do dia das eleições. Por que razão o traficante de repente parou de guerrear? Atacar escola... por que traficante vai querer atacar escola? Traficante quer vender cocaína. Aliás, a disciplina em volta da boca costuma ser super-rigorosa, você não tem criminalidade entre aspas na área onde tem boca.

Sérgio Pinto de Almeida - Ele precisa da simpatia da população local.
Caco Barcellos - E do consumidor. Não interessa guerra com a polícia, não interessa guerra com ninguém, só guerra com adversário que quer disputar o ponto. Isso rola mesmo.

Marina Amaral - Mas no Rio nunca existiu a criminalidade fora de controle, que foi o que se alegou?
Caco Barcellos - Existia, tanto existia que existe até hoje. O que não acho que existia era culpa exclusivamente de uma pessoa, no caso do Brizola, ou do secretário de Segurança dele. Ele fez coisas que acho positivas e coisas que merecem crítica, só que acho que houve um exagero, sobretudo da imprensa, em relação às críticas. Por exemplo: ele colocou na cadeia 450 matadores fardados, em três anos. Matadores que aliás foram a julgamento, como no caso da Candelária. Só existiu o julgamento da Candelária por conseqüência das ações da Secretaria de Segurança dele. Se fosse hoje, não teria o julgamento da Candelária. Hoje teria só o massacre, como acontece quase todo dia lá. Mas não tem punição, não tem matador na cadeia, não tem IPM eficaz, não tem cadeia para os culpados. Hoje, o Rio é a cidade mais violenta do mundo. Mas a violência não está na mídia, porque não interessa estar.

Marina Amaral - Você falou que hoje a Zona Sul está segura, você pode andar...
Caco Barcellos - Para o formador de opinião, o Rio de Janeiro está perfeito, a cidade melhorou, é outro Rio, novos ares, novas cores, mas vai pra Zona Norte! O único jornal que vai, com competência, é O Dia, na minha opinião o melhor jornal do país hoje, o mais democrático. O jornal que ouve o popular, que vai além do túnel Rebouças. Os outros vão eventualmente, vão pelo inusitado. Na minha ótica, a gravidade de uma notícia está relacionada com a vida, a agressão à vida e não a agressão ao patrimônio. Então, o camarada que seqüestra e não mata, pra mim, ele é menos criminoso que aquele que seqüestra e mata. Então, sob essa minha ótica, o Rio de Janeiro é o lugar mais violento porque mata mais. Mata-se proporcionalmente mais para cada grupo de 100.000, assim que se calcula, né? Mata mais que qualquer outra cidade brasileira. Agora, pela ótica de agressão ao patrimônio, já não é a mais violenta. Deixou de ser pela eficácia do patrulhamento.

Bob Fernandes - Quem quiser ler a real, leia O Dia.
Caco Barcellos - Nesse caso específico, da cobertura de violência.

Marina Amaral - É uma matança indiscriminada desse BOP ou eles visam o traficante?
Caco Barcellos - Visam ao traficante.

Marina Amaral - Mas tem uma guerra no tráfico, eles não estão envolvidos nessa guerra?
Caco Barcellos - Podem eventualmente estar, mas não sei te responder assim. Acho que não tem uma regra, uma sistemática.

Bob Fernandes - E nem tem um organograma, é a chamada dinâmica: vamos lá, aquela é a área, chega lá e mata o que tiver na frente?
Caco Barcellos - E, se ali houve uma briga anterior envolvendo PM como vítima, o bicho pega....

Marina Amaral - No livro, você mostra que os 65 por cento dos mortos pela Rota não tinham antecedentes criminais; a ação do BOP é tão indiscriminada como a da Rota?
Caco Barcellos - Não existe trabalho...

João Noro - Investigação?
Caco Barcellos - Investigação zero, se tivesse trabalho correto, eles não brigariam contra o mandado judicial, eles odeiam mandado judicial. O que é mandado judicial? É o embasamento, o documento que é resultante de uma base de trabalho, que o juiz acredita realmente que aquele sujeito é suspeito de algum crime, mais que suspeito há indícios, até provas. Se fosse um trabalho eficaz, filmariam, por exemplo, ações dos delinqüentes, poderiam ouvir testemunhas, levantar documentos provando que o suspeito realmente é um traficante da pesada. Tudo sob a guarda da lei. E se for o caso matar, se houver resistência. Matar é um direito do policial, a Constituição garante esse direito. O que você não pode é prender ou matar sem ter feito nenhum trabalho anterior.

Sérgio Pinto de Almeida - O policial desse BOP, dá pra ter alguns traços desse homem?
Caco Barcellos - De classe social, evidente...

Bob Fernandes - Par a par, mais ou menos saiu da vizinhança.
Caco Barcellos - No caso do Rio. O PM do Rio é mais envolvido em corrupção que em São Paulo. A de São Paulo, aliás, acho que é uma das polícias menos corruptas do país.

Marina Amaral - Civil ou Militar?
Caco Barcellos - A Militar. E o Rio tem uma tradição forte, sobretudo da "mineira". Hoje, é impressionante a "mineira" no Rio, a PM pratica pra danar.
Sérgio de Souza - Como é?
Caco Barcellos - A "mineira"? Estacionam a viatura, hoje um Santana, enviesada assim na pista, e deixam a pista de três mãos com uma mão só, e você pára e eles dão uma geral no seu carro, na sua bolsa, examinam o diabo, até você se irritar, aí é desacato á autoridade. Eles ficam provocando. E, se você reage, e a coisa pode pesar, ameaça de morte, agressão, tudo... mas no fundo eles querem é grana.

Sérgio Pinto de Almeida - Fala mais desse homem, quem é ele, até onde você consegue definir?Caco Barcellos - Acho que ele visa elevar o patrimônio nessa ação.

Bob Fernandes - Ascensão social via polícia.
Caco Barcellos - Via polícia. No caso do Rio de Janeiro, está sendo. Aqui em São Paulo, acho que há na PM uma espécie de idealismo. Aqui, é um tira que acha que está fazendo uma "limpeza" na sociedade. Fazendo um "bem", ele é um "bom" policial, um cara que acha que a sociedade não merece os criminosos que tem. Ele é mais idealista que o carioca.

Marina Amaral - Mas o indício é o preconceito, ele vai escolher quem ele "limpa" ou não. Acaba matando inocentes, mas continua achando que aquilo era um vagabundo, se não cometeu nenhum crime ia cometer depois, com base no preconceito, não é?
Caco Barcellos - E no comportamento também, da juventude principalmente. A Rota já mudou a sua ação aqui. Mas como ela trabalhava? O carro cinzento, para parecer invisível, as luzes... é o contrário de todo o conceito de policiamento ostensivo. O que é policiamento ostensivo? Ele tem de impressionar, fazer estardalhaço, sirene aberta, para evitar que o crime ocorra. Eles, ao contrário, agiam para flagrar o crime acontecendo, de preferência quando estivessem muito perto, flagrando para ir rachar. Então, o carro é cinzento, não tem cores berrantes, luzes sempre apagadas, motor na marcha lenta, policiando a cidade dessa forma e, quando chegavam em cima, o suspeito se assustava, e corria, acho que acontecia muito isso. Não penso que eles saiam do quartel a fim de matar um inocente. Claro que estavam a fim de pegar um bandido, só que o suspeito corria. Se corre, "é culpado".

Marina Amaral - Aí que é fogo, o filtro do cara é o mesmo da gente. Você está andando no trânsito, com a janela aberta, mulher, vêm esses moleques pedir dinheiro, quando às vezes tiram um canivete. Como é que você filtra? Acaba filtrando com o mesmo filtro.
Caco Barcellos - Outra também: um carro do ano, o cara na direção com aparência de pobre, "não combina". Usam essa lógica simplória.

Bob Fernandes - Esses programas todos tipo da TV Manchete, não importa a emissora, como você vê isso, até no sentido educativo?
Caco Barcellos - Acho deseducativo, não é? Porque eles legitimam esse tipo de ação. Mas é uma herança grande. Vem de muito tempo, do rádio, ampliando para a televisão. Então, você ouve o discurso dos repórteres, não tanto dos repórteres, mas sobretudo dos locutores do jornalismo policial de rádio, você ouve em cada casa aí na periferia. Discurso idêntico ao dos coronéis da PM. Algumas pessoas são a favor desse tipo de procedimento. Apurando o livro (Rota 66) eu entrei em muitas casas em que o cadáver estava ali, o velório acontecendo, e o pai e a mãe apoiando a ação da polícia. "Meu filho foi morto por engano, eles se enganaram, se enganaram. Mas, se fosse bandido, tinha de ser morto, sim." Uma das incoerências do meu livro é essa, você acaba escrevendo o que você acha... mas essa incoerência da vítima é chocante.

Bob Fernandes - O que que leva o grande leitor de página policial, que exatamente é quase sempre a vítima, o que leva a ser tão vidrado, qual a identificação com o cara que ouve no rádio?Caco Barcellos - Porque está muito perto da realidade dele. Esse povo, que sobretudo não tem muita opção de lazer, tem na televisão a sua grande opção de entretenimento e aquele noticiário tem um lado positivo. O Aqui e Agora, por exemplo, eu via coisas positivas no Aqui e Agora, ele tratava ali um universo que é real, infelizmente é. E era o único que mostrava aquele povão falando.

Sérgio Pinto de Almeida - Pera aí, Caco, mostrava mas com os olhos da viatura policial.
Caco Barcellos - É o lado que não gosto. Eu queria que ele fosse realmente popular, quer dizer, em vez de acompanhar o camburão, esperar a polícia chegar.

Roberto Freire - Me impressiona ver a quantidade de policiais militares envolvidos com o crime, seja tráfico de drogas, assalto...
Caco Barcellos - Seqüestros também.

Roberto Freire - Você tem uma explicação para isso? Nos outros países acontece também, é claro, mas no Brasil é muito freqüente.
Caco Barcellos - Acho que nunca tenho explicação definitiva pra nada. Agora, arrisco entender alguns componentes pra explicar isso. Acho que o fator impunidade, o camarada que ficou numa corporação aprendeu que ali ele pode cometer crime, quanto mais grave o crime – de morte –, tem a garantia do superior de ficar impune, ele se habitua a se tornar um criminoso. Ele tem arma, e sobretudo ele é mal remunerado, como qualquer trabalhador brasileiro. Mal remunerado, acho que cria um certo fascínio...

Roberto Freire - Ele precisa demais de dinheiro.
Caco Barcellos - Acho que não é à toa que pobre é que rouba mais que rico. coment: Dantas, Nahas, Maluf, Pitta, Kassab, Bob Beef e Gilmar Mendes que o digam (sic)

Roberto Freire - Uma coisa que me deixou impressionadíssimo quando li o seu livro foi o julgamento daqueles caras da Rota 66, que haviam sido julgados pelo júri civil e depois o julgamento foi anulado pelo Supremo Tribunal. Quer dizer, acho que o Supremo Tribunal tem uma certa responsabilidade...

Caco Barcellos - De permitir isso. E nós todos eu acho que temos, de permitir essa coisa, é um escândalo. São eles que determinam esse tipo de postura.

Roberto Freire - A gente pode dizer que a jurisprudência no Brasil está totalmente errada, e precisaria ser revista de cabo a rabo.
Caco Barcellos - Agora mudou, o projeto de lei do Hélio Bicudo...

Marina Amaral - Não vão mais ser julgados pela Justiça Militar?
Caco Barcellos - Não.

Sérgio Pinto de Almeida - Já foi aprovada essa lei?
Caco Barcellos - Aprovada parcialmente, só o projeto. A responsabilidade pelo inquérito continua dos matadores. Quem mata é quem investiga.

Marina Amaral - Eles não julgam mais, é isso?
Caco Barcellos - Não julgam mais os homicídios dolosos, já é um avanço, porém, como a Justiça brasileira costuma se basear nos autos, o que está fora dos autos não é avaliado no julgamento. Se ele receber o inquérito torto, vai julgar torto. De qualquer maneira, é um avanço significativo, o júri popular é que está julgando os crimes de morte dos PMs.

Sérgio Pinto de Almeida – Você, que vive com os repórteres, como é o mecanismo da cobertura policial?
Caco Barcellos - Eu não faço mais a cobertura regular, a diária. Mas acho que é baseada, centrada no destaque pelo inusitado. Então, não é grave o volume de pessoas mortas em São Paulo, 8.000 por ano, mas se tem um episódio fechado, sete pessoas mortas num barraco, então isso é grave, porque não é comum acontecer. É a busca do sensacional. E o fator competição é muito violento hoje, acho que determina.

Sérgio Pinto de Almeida - E não há uma subserviência à palavra da polícia?
Caco Barcellos - É, mas não sei se isso é conseqüência da pressão a que o repórter é submetido, a pressão industrial até, de produção, porque é complicado você duvidar sempre da polícia. Eu me sinto um privilegiado, posso duvidar, não que os outros não possam, mas porque tenho mais tempo para apurar. E nem todo repórter tem esse privilégio que tenho. O camarada pode sair da redação precisando fechar duas matérias. Ele vai duvidar de tudo que é delegado que cruzar na vida dele? Isso só vai derrubar a matéria. Pra mim, é relativamente confortável falar: "Não, tem de duvidar sempre".. Mas eu tenho tempo pra duvidar, posso apurar. Se o teu chefe está lá cobrando, e você está começando na profissão – e hoje as redações estão cheias de profissionais inexperientes –, como "bancar" um chefe, dizer que não tem a matéria, se no dia seguinte o concorrente pode dar com todo o destaque aquilo que o delegado passou para ele? Haja peito pra segurar essa barra. É complicado. Eu consigo segurar situações do tipo assim: chego na redação, não dou determinado assunto porque acho que não tenho elementos que me convençam de que aquilo é verdadeiro, aí sai na concorrência, "pô, você foi furado", e tal. "Agüenta aí, o tempo vai dizer se eu fui o furado ou não." Porque pode haver um desmentido lá na frente, eu me preocupo com isso. Você acaba sempre errando, ninguém é infalível, mas a gente tem o dever de não errar. Acho que não basta você ter uma boa declaração, ter três fontes assegurando que aquela declaração não veio da sua imaginação, mas de pessoas que falaram. A gente tem a obrigação de saber se eles estão falando a verdade ou não, de onde eles tiraram aquilo.

Roberto Freire - É muito mais difícil você ser repórter no Brasil, porque você tem de desconfiar do assassino e da polícia.
Caco Barcellos - De todos. Mas em qualquer lugar do mundo você tem de desconfiar. Eu sofro com isso. Você vê a concorrência dando e você não deu. Um exemplo é o que fizeram com o Marcinho VP, aquela cobertura da gravação do Michael Jackson, a gravação de um clipe na favela do morro de Santa Marta. O Marcinho resolveu dar uma entrevista com a condição de que não revelassem o nome dele, foi feito um acordo com dois repórteres. Aí, um repórter desconfiou do outro. Aí, ninguém cumpriu o acordo, os dois publicaram o nome dele. Ele falou isso comigo. Ficou puto porque disse a eles: "O Michael Jackson pode vir na boa, porque é o morro que eu controlo, a segurança vai ser minha". É uma grande figura o Marcinho VP. Está foragido, fugiu da cadeia.

Bob Fernandes - Grande figura em que sentido?
Caco Barcellos - Eu estive com ele dias antes da fuga. Eu precisava fazer uma matéria no morro de Santa Marta, e você sabe como se faz matéria no morro: o carro da reportagem longe, tudo o que lembre imprensa a distância, e você vai se aproximando, tenta chegar num morador, depois na associação do bairro, sempre procurando chegar no chefão da área. Mas, quando o chefão não está, está na cadeia, tem de ir na cadeia, então fui na Polinter visitar o Marcinho VP e o Lambari, eu queria entrar no Jacarezinho e no morro de Santa Marta, fui pedir lá dentro.

Chico Vasconcellos - De lá de dentro da cadeia, eles controlam...
Caco Barcellos - Controlam de lá. Alguns. Outros tentam, alguns controlam.

Chico Vasconcellos - Esse controle se dá por quê? Por causa de licença, por causa da força?
Caco Barcellos - Da força, mão de ferro, né?

Bob Fernandes - Então é um poder de Estado mesmo.
Caco Barcellos - Pequeno, mas é um poder que segura. É relativamente pequeno porque envolve trezentas pessoas mais ou menos, depende do morro. E interessante: são melhores patrões do que os patrões de baixo. O caso da Rocinha, morei três semanas na Rocinha, num barraco lá, para fazer um documentário. Os pais dos garotos que são aviões...

Sérgio de Souza - O que é avião?
Caco Barcellos - Avião é o cara que leva, traz, tem vários nomes, há os que observam, sabem se a polícia está subindo, se tem muito movimento, muita clientela subindo. Os pais desses meninos ganhando, sobretudo os que trabalhavam ali embaixo, em São Conrado, que tocam hotel cinco estrelas, supermecados, butiques, 300, 350 paus, e o garotão de catorze anos 900 paus, 1.000. Ninguém se escandaliza. Se escandaliza com o garoto com metralhadora; com o salário que o pai dele recebe, não.

Bob Fernandes - Você falou que o Marcinho VP é uma grande figura...
Caco Barcellos - É, como é que ele consegue ser melhor patrão que um cara ali de baixo. É lógico que ele não paga imposto.

Bob Fernandes - Mas esse moço é uma grande figura como, por quê?
Caco Barcellos - Ele tem um pouco de Robin Hood. Quer ver: ele assaltou um caminhão de leite, distribuiu lá... de Coca-Cola também. Ele tem essa coisa, ele cuida dos turistas, não deixa assaltar turista, e tem 24 anos, está escrevendo um livro. Fiquei preocupado porque estive com ele, passei algumas horas com ele, e bem próximo, sem pedir autorização pra ninguém. Cheguei na cadeia, abriram a cadeia com a ajuda de um religioso...

Chico Vasconcellos - Mas eles sabiam que era você que ia entrar ou foi como visita?
Caco Barcellos - Eu fui fingindo que também era pastor. O carcereiro me olhou na cara...

Chico Vasconcellos - O carcereiro te reconheceu?
Caco Barcellos - Claro, o primeiro carcereiro já me reconheceu. Mas deixou entrar. "Ei, Caco, você vai aprontar com a gente aqui?" Eu: "Não, é outra coisa". E expliquei até o que era, e fiquei lá conversando o dia inteiro com ele, entrei à noite. Dias depois, ele saiu com metralhadora atirando, ele e o Lambari. Estão foragidos até hoje. Ele me ligou esta semana, queria bater um papo.

Bob Fernandes - Mas que tal a figura? Conta um pouco sobre instrução, percepção, saque...
Caco Barcellos - Conheci pouco, conheci numa conversa. Claro que ele falando bastante pra me impressionar e tal. É bastante inteligente. Está querendo escrever um livro. A gente conversou muito até por conta disso. Ele estava com um laptop maravilhoso, e alguns capítulos. Ele perguntou: "Quer dar uma olhada?" O pastor falou: "O Rota 66 você conhece?" Falou do meu livro, e ele: "Já ouvi falar, me traz que eu quero ler e tal". E aí o papo girou em torno do livro dele. Pelo menos os dois capítulos que eu li, era uma análise "sociológica" da criminalidade no Rio de Janeiro. Eu disse : "Porra, meu, você tem de escrever sobre a sua vida no morro, é muito mais interessante. Não deixa de ser interessante isto aqui, mas é uma coisa quase até de marketing".. Ele abria a boca falando coisas maravilhosas da vida dele, mas escreveu daquela forma. Fiquei tentando convencê-lo: "Fale um pouco mais da sua vida, de garoto, de como você chegou a ter o poder que você tem, a disputa".. A disputa no morro de Santa Marta é uma disputa impressionante, é uma guerra danada lá.

Sérgio de Souza - Como é que se dá?
Caco Barcellos - É disputa comercial mesmo. O ponto vai crescendo, e cresce o olho do inimigo, se trata de poder pela força mesmo, pela arma, pela morte.

Sérgio de Souza - São vários grupos?
Caco Barcellos - Depende do morro. Há o Comando Vermelho, o Terceiro Comando...

Sérgio de Souza - Mas são poucos?
Caco Barcellos - Não, todo morro tem um. Em alguns morros tem dois. Quer ver, eu disse como a gente faz pra subir, aí é o seguinte: você vai chegando, é o inimigo chegando. Infelizmente, o repórter perdeu aquela imagem, se é que a gente teve um dia, que era a do profissional isento chegando, que estava ali prestando serviço pra sociedade e não por outros interesses. Se for de televisão, mais inimigo ainda. Até você inverter essa história, demora. Passa a noite em barraco discutindo.

Bob Fernandes - Isso eu queria ouvir de você, como é que na hora...
Caco Barcellos - Contei a história do Marcinho. Entrei na cadeia, saí de lá com a promessa de que estava liberado o morro. No dia seguinte ele fugiu, me estragou tudo. Agora está dizendo que está quase liberado o morro, sobretudo porque ele quer mostrar que a PM está fazendo "mineira" na subida. "Bota uma câmara na subida, você vai ver os caras tomando grana da molecada e tal, dão porrada, às vezes matam." Queria denunciar isso lá. Então depende de cada história. O que acontece geralmente é o seguinte: é uma puta dificuldade para você convencê-los a acreditar que você é confiável. "Até seria burrice, ô meu, estar subindo para falar mal de você. Muito mais cômodo ficar lá no asfalto do que subir aqui. Eu quero conhecer a sua história." E aí o que ocorre é assim: se confiam, liberam, você faz. Se a matéria sai legal, aí eles vêm na próxima. O problema é que a próxima costuma demorar, e nem sempre o seu veículo quer, e eles morrem muito rápido. Então, quando você volta, já é outro no comando. Aí tem de começar tudo de novo. Então, se eu disser "estou hoje com sinal verde em três morros", posso estar mentindo, posso chegar lá e já estar fechado de novo. Eu sei que estou legal no Santa Marta, no Jacarezinho, no Acari, na Rocinha, mas isso era há dois meses, no tempo em que eu estava fazendo essa matéria. Posso chegar lá e encontrar tudo mudado, na primeira viela cruzar com um comando ali, que é novo, e ouvir: "Você é um babaca, cai fora".

Sérgio de Souza - Para o leitor ter uma dimensão desses quase exércitos, você tem números, ou coisa aproximada, de grupos?
Caco Barcellos - Acho que a grande falha de todo mundo que trabalha nessa área é desconhecer esses dados. Eu me incluo nisso, estou sempre forçando a barra pra aprender. Eu quero subir com o Marcinho, falei pra ele: "Olha, quero ficar dentro da coisa, quero saber como é a economia de vocês, essa indústria".

Sérgio de Souza - Quantos morros são?
Caco Barcellos - Importantes são dezessete.

Chico Vasconcellos - E a população desses morros é mais ou menos o quê?
Caco Barcellos - Acho que 2 milhões, por aí. Na Rocinha são 300.000. Agora, quem faz essa estatística? Se chuta muito. Aí, você faz pesquisa pra fazer matéria e vai reproduzindo as mentiras dos outros.

Sérgio de Souza - Os traficantes são todos nacionais ou há grupos internacionais também?

Caco Barcellos - Não, são nacionais, uma coisa pequeníssima. No máximo, você tem um fornecedor que vende para a base e deixa ali, um caminhão, um carro pequeno geralmente... Mas é uma coisa pequena. A mídia fantasia, até por estar desinformada, eu acho. Fica acreditando no delegado, que também não apura bem.

Marina Amaral - Mas não tem ligação deles com grupos de narcotráfico maiores?
Caco Barcellos - Tem na compra, né? Não há uma árvore de cocaína...

Marina Amaral - Mas como um cara do morro chega a um fornecedor de grande quantidade de droga?
Caco Barcellos - Tem os fornecedores ali, muitos com ligação com a polícia. Consegui há pouco tempo, numa reportagem, mostrar um pouco disso. Comecei em Goiânia, com uma "base de transporte" grande, e eram alguns PMs que faziam, vamos dizer, um "bico", distribuindo mais armas do que drogas. Os americanos falam que só 10 por cento da droga que passa pelo Brasil – o Brasil é um mero país transportador – fica no mercado interno. Todo o país, só 10 por cento, e o Rio de Janeiro talvez seja responsável por 2 por cento disso.

Chico Vasconcellos - Quem consome mais cocaína, São Paulo ou Rio?
Caco Barcellos - Não tenho esse número, imagino que seja São Paulo. Porque o Rio é muito pequeno, o morro é pequeno. É que o morro impressiona porque é armado, eles têm um controle da área, é o único lugar do país em que o pobre também faz crime organizadamente. No resto, é só o rico que é organizado.

Marina Amaral - E como isso aconteceu? Por que no Rio?
Caco Barcellos - Acho que a geografia ajuda a explicar bastante. Acho que nessas coisas assim de pobreza o carioca sempre está anos-luz à frente.

Sérgio Pinto de Almeida - E tem a coisa do gueto, você atira de cima pra baixo...
Caco Barcellos - É claro, a geografia explica isso. Mas acho que o carioca está à frente sempre, na vanguarda. Vários policiais me disseram, policiais civis sobretudo: "Caco, Rota aqui não se cria".. Eu subi com um pessoal que combate drogas no Rio, um grupo que era da pesada lá, no governo passado. Eles disseram: "Ó, quer ver, fica com a gente aqui".. Sobem um morro atirando e tal, trocando tiros, a favela inteira fechada, barracos todos fechados, aí eles começam a ciscar ali, procurar um barraco, outro. Cessam os tiros do outro lado, porque o tiroteio se dá pra dar tempo de fuga, esconder os bagulhos, se mandar, e nessa hora as casas todas são liberadas para os traficantes. O favelado não pode trancar a porta, a porta em que o traficante bate, ele tem o direito de entrar para se esconder, sob pena de no dia seguinte...

João Noro - Você estar morto...
Caco Barcellos - Isso explica até a dificuldade de prendê-los, qualquer casa vira um esconderijo deles.

Roberto Freire - Falam que eles têm armas mais pesadas que a polícia até.
Chico Vasconcellos - A Veja mostrou uma bazuca, novinha, de um plástico novo, aquela moderníssima. Como aquele trambolho chegou no morro?

Caco Barcellos- Chega pela mesma via da droga. Muitas vezes até por troca. Do Paraguai. É clássico isso. E geralmente é contrabando-formiga, te dão uma por vez, arma pesada vem desmontada, carro da Polícia Federal às vezes traz...

Chico Vasconcellos - A Polícia Federal também trafica armas?
Caco Barcellos - Acho que não tanto quanto os outros policiais. O civil, eles mesmo falam isso, precisam reforçar a renda deles... Não vende só pra traficante, vende para o industrial, para o empresário, o fazendeiro, está cheio de rico armado aí pela cidade. Mas eu queria acabar essa história do morro. Cisca ali, procura, não acha, de repente começam as crianças a aparecer, e mulheres atrás, de repente a polícia está cercada, aí vem pedra, e tem de sair correndo, ou senão se obrigar a matar para não ser linchado.

Roberto Freire - O apoio que eles têm da comunidade é total, não é? Porque rende dinheiro pra eles, dá segurança...
Caco Barcellos - E é uma coisa que pra gente, que não mora em morro, deve ser difícil compreender: pro favelado, o traficante é filho da dona Zica, é povo, cresceu ali, é da turma.

Sérgio Pinto de Almeida - Paga enterro...
Caco Barcellos - E faz isso, paga o bolo de aniversário da dona fulana, financia o clube de futebol, promove festa, dá uma grana pro enterro, se a polícia vai lá e mata, ele paga o caixão, a ambulância...

Sérgio Pinto de Almeida - Caco, eu entrei no Jacarezinho e tem uma coisa curiosa que acho que o pé do morro, a cidade, não conhece, nem a mídia, que é uma cidade funcionando. Tem um mercadinho, e tinha polícia militar no meio da favela, funciona delegacia, posto do correio, posto bancário...
Caco Barcellos - E a arquitetura, a engenharia, é uma coisa maravilhosa. Você tem prédios de catorze andares na Rocinha, sem engenheiro, sem arquiteto. O teto de um segura o assoalho do outro, e Deus embaixo...

Sérgio Pinto de Almeida - Jacarezinho tem um posto da Polícia Militar, com viatura, e funciona 24 horas.
Caco Barcellos - É a intenção de ocupar os morros. Mas o tráfico continua. No Acari é impressionante como acontece o tráfico. Na época da invasão do Exército eu fiquei lá, esperando o Exército fazer a chegada, só que dei azar, ia para uma favela, o Exército ia pra outra. Acabei só vendo como rolava o movimento, o consumo.

Sérgio de Souza - Não há então uma chefia, uma organização estadual, nacional, internacional... Caco Barcellos - Nada, nada. É puro folclore, tenho certeza absoluta.

Roberto Freire - Comando Vermelho, criou-se um mito, ou ele tem uma organicidade?
Caco Barcellos - Tenho certeza absoluta de que não tem. Em Bangu 1 há muitos presos que eram do Comando Vermelho. Então, o bandidão mais respeitado, o mais querido na favela, ele mantém uma ascendência sobre os outros. Mas acho que não passa dessa relação direta do chefe...

Roberto Freire - O cara conquista a liderança pela ação dele, e não tem nenhuma herança de dinheiro... Caco Barcellos - Pela força, né? O camarada matando, se necessário.

Roberto Freire - Quando ele "governa" tem um cara em cada lugar? No morro tal, o nosso cara é fulano...? Caco Barcellos - Claro que sim. Inclusive, quando você está subindo, se você não tem ainda a voz lá de cima, cada quarteirão você tem de passar por um, e passar por um não significa que você esteja legal com o outro. E o problema é quando esses comandos se drogam também. Porque o cara doidaço, de repente, ele entra numa nóia com você e tudo o que foi dito antes de repente pode deixar de valer. Então se apresentam assim: "Você tem tudo o que quiser aqui...". Aquelas fileiras na sua frente, mas essa cordialidade é bem instável...

Sérgio Pinto de Almeida - Como é o tráfico no horizontal, em São Paulo, uma cidade plana e imensa? Caco Barcellos - Não sei te responder assim. Eu me envolvo em histórias isoladas, e aí fico eventualmente bem informado sobre aquela história. Mas não quero ter a pretensão de dizer aqui que conheço, porque realmente não conheço, aliás, não gosto de fazer matérias com drogas, com exceção no Rio, porque acho que o Rio é uma coisa muito mais complexa do que só drogas, porque envolve aquela coisa, envolve corrupção, envolve grana, armas perdidas, extermínio... Acho que morte é mais grave que tudo, não me sinto nem um pouco realizado quando denuncio um policial que é corrupto. E droga envolve muito isso, tem dinheiro, né? E você vê aquelas reportagens, o cara mostra sempre "o mapa da distribuição de drogas", são sempre iguais, setinha pra lá, setinha pra cá, e pode ser totalmente para o outro lado... É difícil ter a dimensão disso, até porque é uma coisa clandestina, ilegal, não é? Se a polícia soubesse, acho que ela seria mais eficaz, ela também desconhece. E São Paulo é complicada, não é? Pra você entender a cidade...Será que existe um supertraficante, até onde vai esse poder, quantos ramais ele tem? Será que funciona como no bicho, será que está envolvido com o bicho? Acho que é diferente. O crack é um fenômeno paulistano. Eu torço pela liberação das drogas. É importante. Porque beneficia a quem, assim, ilegalmente? Acho que ela fomenta muita violência, mais pela disputa entre os corruptos envolvidos nessa história. Imagina no passado, no tempo da ditadura, os corruptos, os maus militares, ficavam ricos, não só os militares mas os homens do sistema todo, levando 10 por cento de uma obra, não sei o quê. Imagina, hoje, um militar em regimento de fronteira. Pega um avião carregado de cocaína, se ele for um mau militar, resolver rachar com o traficante aquilo ali, ele fica milionário em cinco minutos. Então, evidentemente, há uma corrida entre os corruptos por essa oportunidade de ficar milionário.

Roberto Freire - Você diz liberar qualquer nível de droga, pesada, não pesada? Caco Barcellos - Lógico. Acho que a sociedade é muito hipócrita, não gosta de discutir de frente os problemas, gosta de esconder sob o tapete, sobretudo se tem ainda a boa desculpa de ser ilegal. Por que não tratar como o álcool, por que não taxar, trazer algum benefício, pelo menos? A quem interessa que seja ilegal? Aos policiais desonestos? A quem? É impressionante a quantidade de jovens que morrem por falta de informação. Tem bons médicos aí, com belíssimas informações que deveriam ser divulgadas, muito divulgadas, para evitar que jovem drogado morra. É simples você salvar alguém com overdose, se estiver bem informado. Mas o jovem ali, loucão, ele chega no hospital com medo: "Será que eu posso falar, dizer a verdade para o médico, se a polícia está aqui ao lado?" Todo hospital tem um plantão policial. Isso, quando vai ao hospital. Muitos, em vez de procurar socorro, ficam lá puxando a língua do amigo, com medo de pintar sujeira na casa, quantas pessoas morrem assim? E no hospital, se você informa que tem cocaína adicionada a álcool, está potencializada, você põe uma injeção para tirar o efeito do álcool, já tirou a overdose. Ela sozinha, a cocaína, não mata ninguém, acho difícil matar, sempre tem uma associação ou com álcool ou com anfetamina, ou até com noite mal dormida, mil coisas, quer dizer, são vários componentes que levam à overdose.

Sérgio de Souza - E as campanhas do governo, você acha que funcionam?
Caco Barcellos - Acho que não, porque elas não tratam do principal. Veja a dureza que foi a prefeitura de Santos conseguir distribuir seringa descartável, várias ações na Justiça proibindo. É uma cidade recordista mundial em Aids por contaminação intravenosa... eles se picam com seringa coletiva. Tiram o sangue de um, misturam com cocaína, e injetam entre eles. Acho complicado tratar drogas como uma questão policial. Acho que é uma questão de saúde pública, primeiro.

João Noro - Citam muito a Holanda como exemplo negativo. É interessante, porque, para eles lá, não tem problema nenhum.
Caco Barcellos - Tenho uma suspeita, não sou ninguém pra afirmar isso, mas tenho uma suspeita de que é uma fobia americana que a gente absorveu. Depois, não sei de que época, virou fobia americana combater drogas. Hoje, eles combatem por uma questão de Estado, mesmo.

Sérgio de Souza - A que você atribui a posição da imprensa, contrária ao que você pensa, no tratamento do assunto da droga?
Caco Barcellos - Eu nem sei se existe um posicionamento da imprensa a respeito. É que vai meio por osmose, é uma tradição tratar o problema assim. A polícia sempre tem "a maior quadrilha do mundo", "a maior apreensão do mundo", ela chama, vão lá correndo, isso se reflete muito.
Sérgio de Souza - Você nunca participou de uma discussão dessa na Globo? Caco Barcellos - Séria assim, não. Se discute muito pouco. Se trabalha sem muita reflexão, ética não se discute muito. Tem a camareta, a câmara pequena.

Sérgio de Souza - A invasão da câmara escondida...
Caco Barcellos - A ética não se discute, a ética é de cada um. A ética é de quem está com a câmara no ombro. Acho que a imprensa está invadindo perigosamente o espaço de várias instituições. Fazendo papel de polícia, de Justiça, e às vezes de forma muito injusta, muito perigosa. Muitas das instituições estão quase falidas, ou inoperantes, com atividade precária, então estamos invadindo esse espaço.

Roberto Freire - Você acha que os repórteres policiais estão fazendo um bom trabalho ou estão ajudando a que a coisa continue desse jeito por causa de pressões econômicas, como você falou do próprio policial? Caco Barcellos - Acho que tem belos avanços e belos retrocessos. Eu observo avanços, por exemplo, na editoria da Folha de S. Paulo, ela está tratando a coisa com mais cuidado. Evidentemente estou sempre com o olhar voltado pra essa área de injustiça social, violência, não estou fazendo uma crítica aos outros setores, às outras editorias, porque aí a explicação é diferente. Mas, nessa área, o grande problema que eu via até alguns anos atrás era assim: eles reproduziam a mesma filosofia da polícia: "Prioridade aqui é divulgar aquilo que ataca as pessoas de bem, ou seja, o nosso leitor". Revista, jornal, televisão. Era classista demais, e deixou de ser. Progressivamente deixaram de ser, alguns veículos, e outros retrocederam. Leio com freqüência ainda hoje, não só leio, mas assisto à televisão também, que criminoso de baixa renda é "bandido". Criminoso de alta renda é "fraudador", é implicado no precatório. Por que só quem rouba pouco de poucos é o bandido? Quem rouba muito de muitos merece o tratamento correto, não há nem jornalista que chame o banqueiro envolvido no escândalo dos precatórios de bandido. Agora, se o pequeno é bandido, o banqueiro é um bandido maior, porque comprou maior título de forma fraudulenta.

Roberto Freire - Você acha que isso vem da direção dos jornais ou dos profissionais?
Caco Barcellos - Não sei. Não quero ter a pretensão, observo como leitor. Acho assim: que a imprensa brilha quando retrata a realidade nossa, dos formadores de opinião, das pessoas que moram onde há cidadania na cidade. Acho que a gente nunca teve uma imprensa tão eficaz como a de hoje na cobertura de eventos como esse do precatório, do impeachment do Collor, que foram momentos em que os interesses dos empresários do jornalismo estiveram em sintonia com os da sociedade. A grande crítica que eu tenho é do outro lado, a cobertura "do outro lado do rio", do lado onde está a maioria da população.

Roberto Freire - O jornal O Dia deu um salto, no Rio de Janeiro.
Caco Barcellos - Deu um grande salto e está vendendo muito, aliás. E tem outro salto interessante também, supercoerente, o do preço. Por que o jornal brasileiro é um dos mais caros do mundo?

Roberto Freire - São bons os jornalistas de polícia do O Dia?
Caco Barcellos - São excelentes. E em São Paulo também tem muito bons repórteres policiais. Conheço vários, mas são excelentes na cobertura de um lado. Mas isso é até coerente, têm que agradar o público-alvo. O fato de você ter de priorizar a informação de lazer dos Jardins. Você não tem, pega a Folha, o lazer em...

Sérgio de Souza - Itaquaquecetuba...
Caco Barcellos - Itaquaquecetuba, e tem lazer lá, grupos de rap pra caramba, tem peladeiros pra danar, mas não se divulga. Quem conta é o morador daqui. A incoerência maior está na televisão, o jornal, e a revista, eu acho que nem tanto, porque está informando seu público-alvo.

Roberto Freire - Quer dizer então que há uma conivência da mídia, da imprensa, com o poder, no sentido da divulgação dos acontecimentos?
Caco Barcellos - Não digo o poder, mas com o sistema...

Roberto Freire - Poder econômico.
Caco Barcellos - Isso, isso. Pode parecer evidentemente um discurso demagógico esse, né, a defesa da maioria pobre e tal. Mas, pô, o país é isso. Se eu morasse na Suíça, onde o perfil da população é de classe média, lá eu ia querer fazer um jornalismo de classe média. Já num país miserável, eu procuro botar na minha cabeça sempre: o perfil do meu público-alvo é o brasileiro médio, a renda deve ser três salários. A classe média representa 35 por cento da população, pobreza tem 42 por cento, eu estou sempre consultando o Joelmir Beting: "Fale do seu time aí, os dados todos, da riqueza, como é que tá o seu pessoal aí?" Segundo o Joelmir, é de 42 por cento o tamanho da pobreza no Brasil, pobreza mesmo, renda de um e meio, dois salários. Coisa que eu fico indignado com a PM é o seguinte: vivem matando bandido de baixa renda e, quando o bandido é de alta renda, como o PC Farias, quantos PMs eram empregados dele? Doze!! Eles nunca mataram um bandido de alta renda. Eu fiz algumas palestras em entidades da PM, e abria um desafio, eu sempre fazia essa abertura de sacanagem: "Minha profissão pela sua, rapidamente, mas tem que ser muito rápido, o nome de um empresário que o senhor tenha matado? O senhor larga sua profissão de coronel? Eu largo a minha se o senhor me apresentar um. Eu apresento aqui 10.200 homens de baixa renda que vocês mataram".

Sérgio Pinto de Almeida - Na ditadura, quando havia preso político, a sociedade era muito mais mobilizada. Então a OAB...
Caco Barcellos - A ditadura matava a classe média...

Sérgio Pinto de Almeida - Pois é. E a OAB estava mobilizada, tinha uma atuação mais firme.
Caco Barcellos - A ditadura matou 236, não foi?

Carlos Azevedo - Mais os desaparecidos...
Caco Barcellos - É, somando, quatrocentos e poucos. A Rota matou três vezes mais num ano só.

Sérgio de Souza - Você não acha que o respeito pela vida foi muito reduzido e que se fala muito mais em números do que em pessoas?
Caco Barcellos - Isso é uma crítica que eu faço. Acho que a imprensa contribui para esse quadro de violência fortemente. Claro que você tem de hierarquizar responsabilidades, não sei quem é o maior responsável, chutaria primeiro o empresariado, os concentradores de renda. Mas acho que a imprensa vem logo ali atrás. Justiça, eu acho que é devedora: a renda de 97 por cento da população carcerária brasileira é de dois salários mínimos. Que justiça é essa, não é? Eu quero culpar só a Justiça? Claro que não. Ela é a ponta.

Bob Fernandes - Você não acha que tem um pouco a ver quando os grandes jornais, as grandes corporações, estão disputando o maior negócio do capitalismo do século 21, que é a banda B da telefonia, por exemplo todos estão metidos em algum consórcio, evidentemente eles têm um compromisso dentro disso, vão poder atacar um pouco menos aqui, falar um pouco menos ali.
Caco Barcellos - Você coloca o fato de o empresário ter atividade heterogênea, não é? Ele não é empresário de jornalismo só, ele tem interesse em tudo que é setor da economia, e claro que ele tem de pagar um custo editorial disso. Eu não sei se vocês concordam, mas o setor de segurança na imprensa virou um componente político de toda edição. No passado, isso não existia, e hoje é uma coisa controlada ali talvez até de forma prioritária. Em época de campanha política então... A última campanha presidencial mostrou isso muito bem, aconteceu no Rio de Janeiro. Eu recebi propostas de candidatos para pagar minhas investigações a peso de ouro, para usar nas campanhas políticas, porque sabe que isso... Qual é a maior preocupação do paulistano? Medo de morrer em assalto...

Azevedo - Em todas as pesquisas, segurança é o principal problema.
Caco Barcellos - Você não observava isso no passado. Acho que por isso também se melhorou o nível dos profissionais nessa área. Antes era quase vergonhoso trabalhar nessa área, você era o marginalizado da redação, o salário mais baixo, isso mudou completamente.

Sérgio de Souza - Por que você escolheu essa profissão de repórter policial?
Caco Barcellos - Eu acho que era a única coisa em que eu me sentia mais seguro para escrever. Adorava escrever mas tinha vergonha de mostrar, não tinha nenhum escritor na família, e eu inventava de escrever e ficava escondendo de todo mundo. Um dia, meu pai me pegou escrevendo e disse que eu tinha ficado louco, porque só falava ali do meu cachorro vira-lata. E fiquei com mais vergonha ainda.

Roberto Freire - Era o seu herói o seu cachorro.
Caco Barcellos - Um cachorro vagabundo pra caramba, passava o dia inteiro dormindo, e à noite ligadão. Tinha horror a guarda-noturno, radiopatrulha, quando pintava uma saía correndo. E, como eu morava em Porto Alegre, bairro pobre, muitas histórias eu conhecia bem, quando fui trabalhar pela primeira vez num jornal. A Folha da Manhã era uma equipe legal pra caramba, perguntaram o que eu gostaria de escrever. Eu já fazia parte de um jornal hippie... Me senti à vontade, tinha essa liberdade de escolha. Também era regime de ditadura, você tinha maior liberdade pra trabalhar nessa área. A ditadura não ligava para o noticiário policial. E era uma redação interessante, um pessoal ótimo: "Vai lá e conta a história como tem de ser contada, ouve todos os lados". Luis Fernando Verissimo trabalhava nesse jornal, o Ruy Carlos Osterman, o Edgard Vasques, o Elmar Bones, o Antônio Severo. Então foi assim, eu me sentia mais à vontade de perseguir histórias que diziam respeito à minha vida. Aí, um maldito descobriu que eu era taxista, a primeira matéria, não sei se a primeira, mas uma das primeiras assinadas, foi contando como se enganava o passageiro, entreguei todo o jogo. Então eu acho que, quando você escreve sobre aquilo em que você é menos ignorante, é mais simples do que sobre uma coisa em que você é totalmente ignorante.

Sérgio de Souza - Existe um outro motivo que te leva a isso. Não é só isso.
Caco Barcellos - É claro.

Sérgio de Souza - Você é um paladino, digamos. O que te leva a se enfiar num mundo tão agressivo, tão violento, tão desagradável? O que te move?
Caco Barcellos - É a bronca, a indignação, desde garoto. Eu tenho certa bronca da imprensa também. Se eu pudesse, faria um livro sobre a imprensa, a maneira como se trata essa área.

Chico Vasconcellos - Como seria esse livro?
Caco Barcellos - Não quero falar sobre isso, mas seria a mesma coisa, como a polícia. Eu acho que a imprensa não mata, mas contribui.

Chico Vasconcellos - Está um pouco melhor porque não mata ainda.
Caco Barcellos - Indiretamente mata. Às vezes até pela omissão, pelo silêncio, mata mais. Deixar de falar, muitas vezes, é mais grave até do que você se posicionar politicamente. Mas, sem dúvida, essa coisa, sobretudo com polícia, eu estava muito indignado com isso. Tudo o que eu vira como garoto passei a ver como repórter. Acho também o seguinte: eu pago imposto, faço questão de pagar, com que direito o cara pega a minha grana pra fazer aquilo que eu não quero? Com que direito ele usa? Pelo menos o meu grito tem de aparecer. Eu sou contra esse negócio, coronel não tem direito de fazer isso. Faça com, sei lá, com o tenente, mas com a sociedade não. Pelo menos é o meu grito de protesto com relação à parte do meu imposto que ele usa para matar. E é caro matar pra caramba. É muito mais caro do que educar, por exemplo. Um tiro que mata custa muito mais que um mês do moleque na escola.

Bob Fernandes - Quanto custa um tiro que mata?
Caco Barcellos - É uma conta complicada, porque você tem de considerar a hora-trabalho, depende da operação. E freqüentemente eles não matam no confronto direto, um a um, sempre tem cinqüenta pra matar, setenta pra matar. O custo disso é altíssimo, gasolina, carro. E não é só aquele que está no front matando, tem de calcular que há um comando atrás dele, operação de rádio e, mais do que tudo, o preço judiciário da morte. É caríssimo o judiciário, os juízes são bem pagos, e os subalternos mais próximos aos juízes são caríssimos, um processo demora cinco, seis anos, custando horrores. E você é que está pagando. Quer dizer, você pagou pra matar, pagou pra ter o custo absurdo disso. E no final quase sempre não traduz nem mesmo justiça.

Roberto Freire - Você dizia que é mais caro que educação?
Caco Barcellos - É, a Cidinha Campos tem um cálculo sobre os CIEPs, relacionando com matança. Custa 33 reais por mês um menino estudando das 8 da manhã às 8 da noite, isso para padrão de CIEPs, com esporte, música e educação. Custa 500.000 um CIEP. Aquele túnel Ayrton Senna daria para construir quantos? Uma bala acho que custa 8 reais só um projétil, e eles disparam vinte, trinta pra matar. Aí a conta vai ao infinito. Chegou a um ponto em que eles estavam matando oito por dia. E a imprensa todo dia reproduzindo o relato oficial mentiroso do comando. Eu, como jornalista, reproduzia aquilo: "Puta, que idiota que eu sou, que profissional que eu sou? Então vou abandonar essa área, eu não tenho coragem pra dizer que isso é uma grande mentira? Cair fora. Ou vou fazer cobertura de show ou virar outro profissional". Chegou num ponto assim: "Acabou, vou parar minha profissão aqui ou vou enfrentar esse negócio, ou pelo menos vou tentar provar que é uma mentira". Eventualmente eu conseguia, em casos isolados, que envolviam a investigação de um tiroteio, provar que o relato oficial não batia com o que dizia a testemunha, com o que dizia até a perícia. Um pequeno trabalho de apuração já levantava dezenas de incorreções. Quando ocorria de ser bem-sucedido nisso, quer dizer, divulgar a verdade num jornal ou numa revista, a PM eventualmente punia. Punia quem? O soldado que é o cara orientado pra fazer aquilo. Eu me achava até sacana com o soldado: "O coitado dançou, e a instituição, que é uma fábrica de execução, continua inteira, eu fico só causando dano ao soldadinho lá". Através do livro, pelo menos eu poderia provar que quem mata é o sistema, não o soldado.

Azevedo - Você fez o livro porque não conseguia mostrar pela reportagem esse fato?
Caco Barcellos - É. Esse quadro todo, essa seqüência, não conseguiria.

Chico Vasconcellos - Você recebe ameaça?
Caco Barcellos - Recebi uma semana passada. Acho que tem a ver com o livro. Isso é para o resto da minha vida. Outro dia estou no supermercado, recebo um papel, com um palavrão: "Está vendo, cu, podias ter morrido. Assinado PM". Estava com meu filho, imagino que alguém cruzou comigo e me seguiu. Pode não ser nada.

Sérgio de Souza - Você acha que a Rede Globo faria uma matéria, uma série de reportagens, com o mesmo conteúdo do livro?
Caco Barcellos - Hoje faria. Não sei se com o mesmo conteúdo, porque aí eu teria de me imaginar como diretor, não dá!

Sérgio Pinto de Almeida - Nessas matérias barras pesadas, violência da polícia, você acha que precisa ouvir os dois lados, obrigatoriamente?
Caco Barcellos - Não, dependendo da história, não, evidentemente. Acho que é assim: eu cuido também da minha pele. Então, quando vou ouvir o outro lado, quero dizer pra ele o seguinte: "Olha, meu, descobri coisas que não gostaria de descobrir a seu respeito. Posso estar enganado, estou vindo aqui pra te dizer isso, na esperança de que você me convença de que tudo é mentira". Mas aí eu já tinha ouvido quantos? Perto de setenta pessoas, quarenta, vinte, dez, depende de cada caso. "Tenho essa porrada de documentos aqui..." E digo tudo o que tenho. E digo: "Então, o que você me diz agora? Quer falar comigo ou não quer?" Eu vou até com a esperança mesmo de que ele me convença de que está tudo errado, que eu não vou ter aquela matéria. E também estou pensando na minha pele aí, porque, se for surpreendê-lo com aquele volume todo de informação, sem que ele saiba, esse cara me mata no dia seguinte. Então já aviso: "Olha, não reúna tua família pra assistir à reportagem se você tem vergonha e tal", eu até tenho consciência disso. Acho que a única função eficaz, entre aspas, dessas denúncias é o vexame público. Muitas vezes não tenho esperança de que isso vá levar a uma punição, evitar que aquela cena se repita, que a polícia vá trabalhar bem, pra levar à punição, que a Justiça vá punir – o que vai ficar mesmo é o vexame público, o vizinho vai saber que esse cara, que aparentemente é tão bacana, não é tanto, ele aprontou, enganou a sociedade. Claro, o meu intuito é procurar crimes que causem grandes prejuízos públicos, e não o pequeno prejuízo.

Sérgio Pinto de Almeida - Quer dizer que você abre o jogo pro cara?
Caco Barcellos - É, eu digo: "Acho que você causou um prejuízo público". Ele pode dizer que não quer que eu coloque no ar. "Se depender de mim, meu caro, estará no ar. Você não pensou na sociedade antes, está pensando agora, procure seus meios aí para evitar, a Justiça, advogado." Se depender de mim, está no ar hoje à noite no Nacional, ou sei lá onde, na Veja, onde eu estiver trabalhando.

Sérgio Pinto de Almeida - Morte, violência física, chacina, corpos, sanguinolência, aquele horror e tal. Junta a isso as ameaças à família, filho, bilhete no carro, ter de sair do país durante um tempo quando sai o livro, um PM vai no lançamento do livro, provoca incidente, tenta provocar etc. Tem de ter estômago! Onde você vai chegar? Não é uma dose exagerada de sacrifício? Só a indignação move isso?
Caco Barcellos - Mas tem cenas que acontecem comigo que são emocionantes demais. Tipo: ontem, num táxi indo para o aeroporto, uma senhora com a filha, ela da Vila Prudente, as duas gritam: "Caco, não acredito! Você precisa ir para a Vila Prudente". Aí contou que conseguiu o livro, levou para a Vila Prudente, passou de barraco em barraco, quer dizer, você tem muito esse retorno na rua. Me emociona. É carinho pra caramba, é carinho pra danar, e de gente de todo o tipo. Quer dizer, tem alguém assistindo, acha que isso tem alguma importância, que está contribuindo de alguma forma para alguma coisa. Isso é um dado importante.

João Noro - Você deve ter sonhado a vida toda que haveria uma solução para essa polícia. Qual é esse teu sonho? Como você resolveria?
Caco Barcellos - Ah, é um sonho... Eu acho tão simples, é uma coisa, digo simplória porque não vai além do desejar uma polícia mais democrática. Que trate todo o cidadão da mesma forma. Eu não tenho nenhuma queixa como cidadão de classe média que sou hoje. Não tenho queixa da polícia, ela não me maltrata, eventualmente se me identifica como o cara que denunciou lá e tal, sim. Mas é uma coisa que eu tenho consciência de que é isolada. Com o perfil que eu tenho de cidadão morador dos Jardins, não tenho queixa nenhuma. Mas eu queria ver a polícia tratando todo mundo dessa maneira. A coisa mais imediata que eu te respondo é isso.

Carlos Azevedo - Que esperança você tem de concreto que isso possa a vir a acontecer enquanto você está vivo?
Caco Barcellos - A grande esperança de as pessoas, os pobres, partirem para a violência. Violência organizada, dirigida. Eu acho que é legítima. Não é sonho, às vezes fico torcendo para que isso ocorra. Não a violência isolada como a dos seqüestros.

Bob Fernandes - A reação.
Caco Barcellos - É, que exige respeito. Adorei outro dia aqui, uma coisa banal, boba. Puseram fogo em frente ao Cingapura, tinham sido atropeladas oito pessoas num mês. Puseram fogo, fizeram um buraco no meio da avenida. Eu acho que isso é legítimo. Já que se arma tanto para assaltar, eu adoraria que fosse um assalto coletivo. Talvez resolvesse mais rapidamente. Adoraria ver o morro todo descendo...

Sérgio de Souza - Como os sem-terra...
Caco Barcellos - Sem-terra, eu acho que é a coisa mais incrível que o país vive hoje. Uma coisa que não causa dano pra ninguém, e tem ali o direito sendo dia a dia reivindicado, exigido quase. E a sociedade até, uma pesquisa apontou 62 por cento de aprovação. Tem um fundamento ético interessante também – a disciplina entre eles. É a maioria do país, pô! Eu acredito ainda na força do coletivo. Eu vejo com relativa simplicidade. E acho que fico um pouco refém disso também. E aí recebo cartas incríveis, cartas que dá vontade de publicar como estão. Só que na televisão não dá pra escrever. E outra: é emocionante você entrar numa cadeia, num xadrez, sem medo de virar refém, é interessante você chegar na periferia, com dificuldade de aproximação, mas de repente o garoto fala: "Esse aí pode entrar". Em resumo, é muito carinho na rua, demais isso.

Sérgio de Souza - Mas, testemunhar a violência, não te assusta um pouco de o repórter se tornar insensível? Caco Barcellos - Mas eu não curto jornalismo policial tipo o que curte mostrar o tamanho que ficou a perna do Mamona, quanto que sobrou do olho daquele ali. Pra mim, o importante é a história, o que representou naquela família aquele incidente ali. E também uma coisa que me fascina muito é que nessa área você tem a oportunidade, que talvez não tenha nas outras editorias, de chegar tão próximo da verdade, que é um conceito relativo, mas se aproximar bem mais facilmente do que, por exemplo, na editoria de economia. Cobrindo economia, eu chego no Morumbi, dificilmente vou entrar numa mansão no Morumbi como entro cobrindo um incidente que ocorreu com aquela mesma família envolvendo violência. As pessoas são surpreendidas de tal maneira, é tão agressivo o incidente com violência, que as pessoas se desprotegem, eventualmente ali, e se abrem mais pra você. De repente eu estou no quarto de um cara que é executivo de uma grande organização, que em outra circunstância me receberia como repórter formalmente, servindo um cafezinho. Então eu tenho muito mais possibilidade de conhecer a história daquela família...

Roberto Freire - A condição humana...
Caco Barcellos - É, mais nessa área do que em outra.

Sérgio de Souza - Mas a violência não é só essa do sangue, a violência de um delegado, por exemplo, não choca profundamente o tratamento que um delegado de polícia dá ao cidadão que chega na delegacia?
Caco Barcellos - É, mas por chocar é que eu acho que tem de trabalhar contra essa coisa. Isso me move.

Sérgio Pinto de Almeida - Quando você respira, dá uma reciclada, pra agüentar mais um tranco?
Caco Barcellos - Eu me reciclo descansando, só. Eu sei que no dia seguinte, muito provavelmente, vai acontecer uma barra pesada de novo. Descanso, jogo futebol, faço outras coisas. Não fico trabalhando todo o tempo. Mas a sua pergunta não tem a ver com esse pequeno intervalo de trabalho a trabalho, e sim na vida toda mesmo, né?

Carlos Azevedo - Você acha que te compensa essa simpatia, as pessoas reconhecerem teu trabalho, isso pode ser uma forma de se realizar?
Caco Barcellos - Claro que tem o componente de vaidade, mas é mais que isso, ou outra coisa além disso. É assim, estou num caminho... talvez necessário, ou junto com muita gente que pensa dessa forma.

Sérgio de Souza - É político.
Caco Barcellos - É.

Carlos Azevedo - Porque, ao lado de toda violência e tal, existe muita vida.
Caco Barcellos - Eu tenho surpresas mesmo na polícia, PMs ligam passando informação. Alguns – esses eu não considero muito –, quando brigam no quartel, ligam pra criticar aquele que os puniu. Mas tem manifestações saudáveis, os que acham que o caminho é assim, policiais civis, juízes também.

Roberto Freire - Eu sinto que o centro que move a tua atividade como repórter policial é a injustiça social. Caco Barcellos - Você sabe que o Narciso Kalili me disse uma coisa muito parecida. Perguntaram pra ele, alguém pediu uma síntese dos repórteres que ele tinha. Ele falou: "O Caco, a matéria-prima do trabalho dele é injustiça social". Saudades do Narciso.

Roberto Freire - Fico contente de concordar com o meu querido amigo Narciso.
Marina Amaral - Como você abriu o caminho para poder falar disso, acho que seria legal falar de uma emissora poderosa como a Globo, e os outros órgãos de comunicação em que você trabalhou – eles não teriam interesse nenhum de se posicionar ao lado dos injustiçados sociais. No entanto, é aquela história, os jornalistas são de esquerda e o resultado é de direita. Como você conseguiu abrir caminho na grande imprensa, qual foi tua arma para continuar do teu lado sem perder o emprego, e conseguindo...?
Caco Barcellos - Eu acho que foi a dedicação pra levantar assuntos com bastante consistência, que acho que trazem o retrato sério de uma determinada história em que estou envolvido. Isso facilitou a abertura de espaço, mostrar linha por linha que aquilo ali tem uma verdade possível de ser provada, ou o próprio documentário provando isso. Sou um pentelho que só trabalha em torno disso, sempre. E tem o dado, que acho significativo, da audiência. Quando o ponteirinho da audiência sobe, tudo fica mais fácil, que é o interesse econômico que faz isso.

Carlos Azevedo - Capitalismo veicula qualquer coisa que dê dinheiro, seja o que for.
Caco Barcellos - Exato. A audiência, indiretamente, está o dinheiro envolvido ali, né? Então, evidentemente, se eu contasse histórias que levassem as pessoas a mudar de canal, não estaria trabalhando num veículo como a televisão, estaria fora, sem dúvida.

Sérgio Pinto de Almeida - Talvez a história mais emblemática da barbárie brasileira seja a do Carandiru. Tenho a sensação de que ela nunca foi suficientemente explorada. Por exemplo, duas pessoas me dizem, uma ligada ao IML, outra da área da polícia, que foram mais de 111 mortos.
Caco Barcellos - Não acredito. Porque a cadeia é muito solidária. Apareceria alguém: "Ó, o meu amigo desapareceu". E teve muita gente investigando, investindo em cima dessa história do número. A PM escondeu a verdade por algumas horas apenas; 111, depois 115, 117, 250, tanto faz, não é? O impacto de 111 já era forte demais.

Marina Amaral - Carajás foi bem contado?
Caco Barcellos - Acho que foi. Por isso estou dizendo que a imprensa está melhor. São tantas coisas que ela veio a cobrir... e a ação dela trouxe várias revelações que não trazia com essa freqüência, pelo menos num passado não muito distante.

Bob Fernandes - Mas não houve reportagem sobre os policiais, seria uma bela maneira de contar um pouco daquela coisa...
Caco Barcellos - Mas a PM impede de falar. No Brasil inteiro são proibidos. É o comando que fala, é a 5» Sessão, não só no episódio de Carajás.

Roberto Freire - Por exemplo, a história do Chico Mendes. Foi adiante, se descobriram os culpados. Mas essa história de Carajás ficou parada.
Caco Barcellos - Mas o processo está andando, é que é assim mesmo.

Roberto Freire - Mas é um processo que anda, anda...
Caco Barcellos - Porque quem está produzindo o IPM é a PM, então vai ser assim mesmo, como é o Carandiru.

Sérgio de Souza - Você vê diferença entre policial homem e policial mulher?
Caco Barcellos - Não conheci ainda nenhuma corrupta, mas também conheci poucas. Acho que elas são mais idealistas do que os homens, acreditam mais na instituição, principalmente na Polícia Civil. Tem delegadas aí bem interessantes.

Carlos Azevedo - Elas torturam menos ou mais?
Caco Barcellos - As que conheço são dessa nova geração. E é verdadeiro na nova geração: tanto os homens como as mulheres estão querendo uma profissão melhor. E você fica até admirado, vendo gente bem vestida, e os salários ainda ridículos, muito ruins. Agora, realmente essa coisa da tortura é um negócio louco. Entre os torturadores, dez em dez são preguiçosos. Depois ficam se queixando da Justiça: "A gente prende e a Justiça solta". Mas é claro, a Justiça recebe a prova baseada no declaratório, na confissão do réu, não tem nenhum trabalho que comprove que o declaratório é verdadeiro. E, se o juiz tem um mínimo de consciência, na dúvida ele solta.

Roberto Freire - Como foi o caso do Bodega.
Caco Barcellos - É claro que é duro você sair para a rua, interrogar, "fazer campana", como eles falam, filmar, criar provas. Tem de gostar da profissão.

Bob Fernandes - Porque não tem um retorno total do trabalho.
Caco Barcellos - Teria, mas o cara ganha tão mal também, é complicado você cobrar. É impressionante, nos anos 50, a Delegacia de Homicídios era bem mais equipada do que hoje. Tinha um ônibus de perícia em São Paulo, saía no ônibus o médico, que ia colher o fio de cabelo do suspeito. Acho que hoje quem está fazendo esse papel de Justiça é o advogado. Por isso eles estão valendo ouro, é aquela coisa que eu estava falando no começo. A classe média gosta de polícia assim como é hoje. E via advogado ela compra o destino dela. Salvo exceções. Tem advogado valendo 300.000 reais, aquele pesado. Agora, ele embolsa todos aqueles 300.000? Claro que não. Ele vai ter de comprar, vai ter de maquiar a cena do crime.

Carlos Azevedo - Uma verba de "produção".
Caco Barcellos - Os caras constroem parede, fazem coisas incríveis. Por outro lado, como não há perícia, a perícia não é eficaz, salvo o caso que a mídia cobre, que envolve vítima famosa ou rica, aí eles trabalham com eficiência. Mas, quando é gente comum, não tem perícia, é muito raro ter perícia. Vamos imaginar uma situação aqui: eu atiro em você. O Sérgio é testemunha. Ele tem certeza de que eu estava alterado, que você estava me ofendendo pra caramba, eu atirei, eu também fui perverso, não sei o que, fiz o diabo, é o testemunho do Sérgio. Aí o advogado chega lá na hora em que o Sérgio está depondo, ouve tudo e diz: "Esse é um puta mentiroso. Como ele atirou dessa maneira e atingiu a vítima, se existia uma parede entre os dois?" A parede que ele mandou construir depois do crime...

Sérgio de Souza - Há casos assim?
Caco Barcellos - Esse é um exemplo que sempre me ocorre, mas há uma porrada. Eles compram o perito. Acho que não é um exagero afirmar que eles é que fazem justiça. Porque a Justiça tem essa coisa, ela só julga aquilo que está no autos. E é fácil testemunha desaparecer, eu compro a testemunha: "Olha, você está realmente querendo depor contra o criminoso? Você é um cara pobre, vai ser perseguido, vão te ameaçar de morte". Compra o silêncio, às vezes nem precisa comprar o silêncio, só ameaça.

Marina Amaral - O advogado criminalista às vezes é o cara que só vai lá e dá a caixinha para a polícia mesmo, para evitar o começo.
Roberto Freire - Para o juiz também...
Caco Barcellos - Não sei se tanto, porque nem precisa, você já desmonta tanto a prova que nem precisa comprar o juiz. Até porque não é o juiz que julga, eu estou falando de crime de morte, são os jurados. Na área civil sim, que são crimes que a imprensa não leva muito a sério, é um juiz soberano lá que julga. Existe a contrapartida, ninguém sabe o que rola. Aliás, estou sofrendo três ações cíveis, é uma perseguição danada.

Sérgio de Souza - Quais são?
Caco Barcellos - Todas da PM. Já fui absolvido numa e tem mais duas. Gastei muito mais do que ganhei com o livro só com essas ações. Porque um PM diz que antes de o livro existir ninguém dizia para o filho dele: "O seu pai é um matador". Então, o filho começou "a sentir vergonha, teve a vida prejudicada", e ele quer indenização. Esse, eu fui absolvido em primeira instância. Pedia 1 milhão de dólares. Tem uma outra que é o recordista, eu identifiquei 52 cadáveres dele, está me processando e quer acho que 700.000 dólares porque não pedi autorização para falar o nome da Rota. O terceiro eu não sei direito, porque a ação está começando. E, quando acabou a primeira ação, quando fui absolvido, eles entraram com a segunda.

Bob Fernades - Vão ficar te enchendo o saco.
Caco Barcellos - O advogado até me alertou para isso: "Eu acho que você tem de tomar uma providência aí, porque você vai à falência rapidinho".

Roberto Freire - Vai ter de assaltar um banco pra pagar.
Caco Barcellos - Porque, quando fui absolvido, pedi à Justiça que cobrasse as custas do acusador, e aí alegaram pobreza, porque são soldados que estão à frente da ação. Se você vê os advogados deles, são advogados caros. Eu suspeito, não posso afirmar, que sejam os coronéis que põem à frente o soldado. Quer dizer, ele pega pelo econômico, é uma grana que você gasta...

Sérgio Pinto de Almeida - A editora não está ajudando?
Caco Barcellos - Não, eu estou sozinho. Mas aí também porque, antes de eu editar o livro, uma banca jurídica analisou: "Para a gente está ok. Agora, você assume a responsabilidade disso?" Aí eu falei aquela coisa que já disse aqui: "Estou decidido a abandonar a profissão, aconteça o que acontecer comigo, cadeia eu vou achar ótimo, se acontecer de eu ser preso, acho que vale a pena um sapo na garganta, se for pequeno... Só não quero dançar, não quero morrer".

Carlos Azevedo - Você disse que gastou mais do que ganhou com o livro, com despesa de advogado.
Caco Barcellos - E, se você considerar, "eu não estou gostando do meu trabalho, o tempo não vale nada mesmo então...". Mas, se considerar que trabalhei cinco anos, ou quatro que sejam, de trabalho efetivo, calculando dez, quinze horas por dia... Não estou considerando o salário que eu mereceria, só o que gastei pagando free-lancer, e gastava, tinha umas economias pra fazer uma casa na praia, gastei tudo no livro. Só isso já foi com os processos. Sem contar o que eu deveria receber pra fazer. Imaginando que fosse um trabalho profissional, uma editora pagando, "você vai trabalhar cinco anos fazendo isso", aí teria gastado muito mais. Simples: ganhei 45.000 dólares com as vendagens do livro, que recebi da editora. Só sei esse valor.

Roberto Freire - Te deram de adiantamento?
Caco Barcellos - Não, quando ele vendeu muito, a inflação era muito alta, você sabe como é direito autoral, eles pagam de três em três meses, pelo preço da capa vendida, e valor não corrigido. Então eu perdi 90 por cento na época, dos 10 por cento do direito autoral. Então, talvez pelo número vendido, eu teria 150.000, por aí, seria uma boa grana. Mas sei que foram 45.000 porque pedi pra entrar esse dado no processo. É absurdo esse pedido de 700.000 se eu ganhei 45.000. Isso eu gastei só para fazer o livro, seguramente. Já com as ações gastei mais.

Sérgio de Souza - E você acha que esse coronelato é o mesmo da época de então, esse pequeno poder é o mesmo?
Caco Barcellos - São os mesmos coronéis. Eles estão até meio por baixo agora, mas a filosofia é a mesma. Outro dia, não sei quem me explicou, acho que foi um promotor: "Se você quer entender por que se mata tanto hoje em São Paulo, amanhã no Rio de Janeiro, depois em Carajás – a organização, a estrutura é a mesma, tem de pensar em quem está no comando dos batalhões, a filosofia desse camarada, sobretudo no comando da PM". Porque é evidente que o Brizola era contra isso, o Covas também é, tem um governador que é a favor. Muda o governador, muda um pouco, a circunstância política determina que se freie um pouco, mas eles continuam matando igual, mesmo com o Brizola lá, mesmo com o Covas, porque é o coronel que manda fazer isso. Ele sabe que em quatro anos o governador vai embora e ele continua ali. E diz que isso é ato de bravura, que significa ponto de carreira, a ascensão na carreira. Ato de bravura significa possibilidade de ascensão de cabo pra sargento, de sargento pra tenente... 20 por cento a mais de salário. Isso pega muito mais do que um governador discursar: "Vou botar na cadeia, e tal" – que vai embora no dia seguinte.

Roberto Freire - Sempre tem os discursos de elogio aos matadores, que são heróis.
Caco Barcellos - Internamente, sim. E tem a retórica eventual de um governador, que conta, é claro, tem um reflexo também se mandar o matador pra cadeia., como fizeram no Rio de Janeiro. O Carandiru, quantos estão na cadeia? Foi no mesmo período da Candelária, todos estão punidos da Candelária, do Carandiru nenhum, porque era um reflexo daquela época, daquela situação política. Não sei se estimulava isso. Não contestavam essas ações.

Marina Amaral - Com uma polícia dessas, como você vê uma operação Tolerância Zero, essa de pararem as pessoas aqui em São Paulo?
Caco Barcellos - Acho interessante. Sei, é uma sacanagem, praticamente só aborda o preto pobre. Mas é melhor abordar o preto pobre do que matar o preto pobre. Então aborda, é evidente que o preto pobre está ali também, é muito freqüente estar assaltando. Mas acho que deixa a imagem de polícia presente na rua. Acho que você, inibindo o pequeno crime, evita que ele se transforme num grande crime lá na frente. Acho que as pessoas estão precisando de exemplos de alguma punição. Acho que a instituição da cadeia ainda amedronta, ela é medieval mesmo, e as pessoas sabem disso. O risco de ser preso, de ir para uma delegacia, acho que é legal que se mantenha esse medo, para conter um pouco...

Marina Amaral - Mas não tem o risco de abordar uma pessoa dessas, levar pra delegacia, dar um pau nela pra confessar qualquer coisa pra qual eles estejam procurando um culpado?
Caco Barcellos - Feita da maneira como estão fazendo, acho que não. É uma coisa bem transparente, está ali, não é no escurinho da noite, é durante o dia. Vai para a delegacia, avisam a imprensa que estão fazendo isso. Acho que o objetivo não é praticar o extermínio com isso. Acho também que você tem o direito de circular sem ser importunado. Fui abordado no Rio de Janeiro, e disse: "Por que você está examinando a minha bolsa?" "Porque eu suspeitei do senhor. E daí, algum problema?" Louco pra te dar uma porrada logo, arrumar encrenca. Isso é ilegal, evidente que é ilegal. Mas você não pode ser tão purista. Se eu começar a denunciar esse tipo de coisinha, não vou poder mais andar pela rua: "Esse é um cara pentelho, um chato".

Marina Amaral - Mas quando você pensa quem é a nossa polícia...
Caco Barcellos - Acho assim, quer ver? Quando acompanho alguma operação, ou vejo o policial violento na hora da ação, eu diria que não é legítimo mas passa. Até eu próprio, se levar uma porrada, como já levei na confusão, no quebra-quebra, tudo bem que o policial te deu uma porrada, porque está no calor do acontecimento. Ele não pode é dar essa porrada, te prender, te algemar, levar pra delegacia e continuar te agredindo, aí é uma covardia. Mas essa brutalidade é tolerável na rua. Acho que não dá pra ser tão bonzinho. Está no calor do acontecimento e tal. Tem de ser, como qualquer polícia do mundo. Agora, o objetivo da operação de revista às pessoas é conter o absurdo do índice de homicídios, que você faz fiscalizando, apreendendo as armas ilegais. Recolher arma eu acho uma coisa interessante. Acho que é um desrespeito à cidadania, mas necessário, porque a sociedade também não está aí boazinha, está matando demais, e tem de procurar os pontos em que tem gente armada e tirar a arma dessas pessoas. Não acho grave. Não é o ideal, mas a gente está tão longe dos ideais...

Sérgio de Souza - Se justifica....
Caco Barcellos - Se justifica. E, veja, aqui está abaixando o homicídio, um pouquinho, quase insignificante, mas melhor do que se estivesse subindo. Acho que é o resultado dessa política mais branda, e do recolhimento das armas. A polícia deixou de matar 1.400 por ano e a criminalidade não se alterou. Maior prova de que as mortes não eram necessárias.

Marina Amaral - Quando baixou?
Caco Barcellos - Ela vinha batendo recordes ano a ano. Em 1992, chegou a 1.500. E aí foi descendo sempre, baixou para 400 e este ano que passou, 180. É muito 180, mas....

Carlos Azevedo - A que você atribui?
Caco Barcellos - Uma mudança de postura do comando, sem dúvida.

Carlos Azevedo - O secretário de Segurança....
Caco Barcellos - Também, evidente. Acho que o Carandiru contribuiu para isso, porque virou escândalo mundial. E isso eu acho que pesou. É muito séria essa coisa. Outra coisa que você vê observando a estatística: católico matando mais que todo mundo – mas, também, a maioria é católica. Não é um pecado capital?

Roberto Freire - O que nos levou a ser o segundo país em violência?
Caco Barcellos - Não sei responder bem, mas por trás de um crime sempre tem dinheiro, sempre. É incrível. Ou 10 reais numa disputa por crack, ou 5 reais de uma dívida de crack; ou um superempresário endividado, ou em desavença com o sócio dele. E acho que essa coisa da impunidade chegou a um ponto em que é mais tranqüilo, para falar no crime na grande esfera, o criminoso resolver a pendenga com o sócio pela via da morte do que entrar com uma ação, esperando e gastando aquela fortuna com advogado e tal. Cada investigador da delegacia especializada costuma ter trezentos casos pra investigar simultaneamente. É lógico que ele não consegue investigar trezentos casos simultaneamente. Então, a chance de aquele crime estar no meio desses trezentos, a chance de ficar impune é muito alta se comparada com a possibilidade de ele ganhar a causa na Justiça, que ele vai ter de arrumar uma prova consistente e tal. E o cara, se não tem boa cabeça, procura o caminho mais simplório, mais garantido e mais brutal.

Chico Vasconcellos - O maior corruptor, segundo você, é o advogado, não é?
Caco Barcellos - Não o advogado, mas ele é o agente. A gente tem de se acostumar a considerar, não sei se é um exagero meu, tão grave o crime corrupto como o do corruptor.

Chico Vasconcellos - Isso aí é que falta, aquela história da CPI das empreiteiras, que não saiu porque é do corruptor.
Caco Barcellos - A do Collor também, né? Às vezes penso assim: estão faltando exemplos mesmo de punição nas altas esferas. Imagina o camarada ali que pega uma arma, o cara que é ladrãozinho: "Por que eu não vou roubar se tem o camarada lá que é banqueiro, ele pode, por que eu não posso?" Deve passar isso na cabeça dele.

Roberto Freire - Todo dia acontecem não sei quantos assassinatos, não sei quantas mortes, e a gente acaba vendo números. A gente começa a dar mais importância às palavras do que aos atos. "Morreu" é uma palavra; agora, quando você vê uma pessoa morrendo, é uma coisa completamente diferente da palavra "morreu", não é? Acho que você convive com isso e está vivendo muito mais próximo do que talvez todos nós, da violência do sistema, da corrupção do sistema, de como ele é capaz de matar, destruir vidas, e acho isso fantástico.
Caco Barcellos - E é complicadíssimo você trabalhar numa coisa que é extremamente dinâmica. É terrível, porque você não tem tempo pra respirar, pra refletir e conseguir formalizar um pouco o que significa isso. É tão dinâmica, é tão veloz, e é tanta incerteza na cabeça da gente todo o tempo, que a investigação é inesgotável. Se você trabalhar cinco dias, chega a uma conclusão; se trabalhar sete, chega àquela mais A; se trabalhar vinte, vê que talvez todos aqueles dias anteriores não serviram pra nada. É uma coisa sem fim, né?

Sérgio de Souza - Acho que há necessidade de mais Cacos Barcellos, no fundo é isso.
Caco Barcellos - Será?


Entrevistadores: Marina Amaral, Sérgio Pinto de Almeida, Bob Fernandes, Chico Vasconcellos, Roberto Freire, João Noro, Carlos Azevedo, Sérgio de Souza. 

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