Saúde: Modernização e expansão da precarização social e do trabalho

Ensaios de Saúde Pública

As novas relações de trabalho, o desgaste mental do trabalhador e os transtornos mentais no trabalho precarizado
Por que os avanços da ciência e tecnológicos – patrimônio humano – não têm se traduzido em emprego e inclusão de amplas parcelas da humanidade?
Por que o aumento da produtividade não tem se traduzido em redução das jornadas de trabalho sem prejuízo do salário?

Tânia Franco¹
Graça Druck²
Edith Seligmann-Silva³

Resumo

A perda da razão social do trabalho tem como ressonância a perda do sentido do trabalho para aqueles que o realizam. O objetivo principal deste ensaio é analisar de que forma a saúde mental é prejudicada pelas atuais contradições entre modernização e expansão da precarização social e do trabalho.

Na primeira parte, procura-se entender a questão através de uma visão sócio-histórica, expondo-se a seguir indicadores internacionais e brasileiros que demonstram essa precarização. Na sequência, as autoras apresentam uma análise crítica do modo pelo qual, a partir da busca de maximização da competitividade, surgiu um modelo social que, em nome de uma excelência cujo significado conjuga perfeição e superioridade, propicia discriminação ou exclusão para todos os que de alguma forma desvelam seus limites humanos.

Os paradigmas deste modelo, atualmente dominante, são examinados para identificar os impactos psíquicos, destacando os adoecimentos relacionados à violência laboral. As autoras assinalam ainda o aumento de vulnerabilidade psíquica nos contextos de pobreza.

A seguir, é apresentada uma reflexão sobre o despertencimento social e o desenraizamento humano e, na parte final, são discutidas perspectivas de reverter a degradação social, do trabalho e da natureza.

Introdução

Seria alentador abordar o trabalho como meio de vida e de conquista da dignidade humana. Poder divisar o alívio do esforço/sofrimento no trabalho em face dos avanços tecnológicos e do conhecimento científico na história da humanidade.

Contudo, o que se constata no mundo real do trabalho é um distanciamento crescente entre práticas organizacionais e direitos sociais conquistados. É o paradoxo que encerra o trabalho contemporâneo: 
  • sua combinação com precarização social, com adoecimento dos indivíduos e destruição ambiental.
Refletir sobre o tema conduz a indagações instigantes e inevitáveis. O que é que nos aconteceu histórica e socialmente para estarmos, hoje, a pensar em três binômios:
  1. Trabalho e adoecimento, não como um problema individual, mas como um problema de saúde pública que atinge os indivíduos em escala crescente;
  2. Trabalho e degradação/crise ambiental, revelando padrões de produção e consumo que rompem os limites de tempo (comprometendo gerações futuras e os mecanismos reguladores dos ecossistemas) e de espaço (contaminando populações próximas e distantes, diversas espécies, destruindo a biodiversidade, a teia da vida), depredando o planeta;
  3. Trabalho e precarização social, que compromete gerações, privando-as de educação e trabalho digno, gerando violência social.
Por que os avanços da ciência e tecnológicos – patrimônio humano – não têm se traduzido em emprego e inclusão de amplas parcelas da humanidade? Por que o aumento da produtividade não tem se traduzido em redução das jornadas de trabalho sem prejuízo do salário?

Apesar dos elevados patamares tecnológicos alcançados em todo o planeta, o mundo da produção continua, predominantemente, estruturado e se movendo pela acumulação de capital e lucro. Isto leva à progressiva hipotrofia e perda de uma razão social do trabalho.

A lógica produtiva permanece a mesma que regia as relações capital/trabalho no século XIX, aprofundando a apropriação privada da riqueza socialmente gerada e dos elementos da natureza, consolidando o mercado como eixo da sociedade. Esta lógica limita, ou mesmo extingue, as possibilidades do trabalho se constituir um meio de desenvolver a dignidade, a solidariedade e as potencialidades do ser humano.

Sem dúvida, ocorreram avanços históricos nas sociedades urbano-industriais capitalistas que resultaram em direitos sociais marcantes durante a Era de Ouro nos EUA, entre 1940 e 1970, e durante o Estado de Bem-Estar Social nos países europeus, entre 1950 e 1970 (HOBSBAWN, 1995).

No Brasil, desde a Era Vargas, com a Consolidação das Leis do Trabalho, seus desdobramentos posteriores e a Constituição de 1988. Ao longo do tempo, ocorreu inclusão social de segmentos de trabalhadores em todos estes países, em maior ou menor grau, bem como metamorfoses nas configurações das relações capital/trabalho.

Mas, ao concentrarmos nossa análise no momento atual, constatamos retrocessos sociais importantes em relação às três décadas anteriores, traduzidos na crescente precarização do trabalho. Este é um processo complexo, pois mantém a relação capital/trabalho em sua essência, ao tempo em que transmuta as suas formas de existência. 

Ou seja, forja mudanças epidérmicas, de superfície, através de diferenciados estatutos de trabalhadores que camuflam a relação essencial capital/trabalho, confundindo as figuras sociais básicas representativas – empregado e empregador – que norteiam a vigência e a aplicação das leis trabalhistas(4).

Neutraliza e anula a regulação social do trabalho (com a consequente perda de direitos conquistados pelos movimentos sociais anteriormente), naturalizando o trabalho precário, banalizando a injustiça social e a violência no trabalho (principalmente, a violência psicológica).

Dissemina uma era de precarização socia(5) e de trabalho socialmente desagregador, terreno fértil para o sofrimento e o adoecimento dos indivíduos, configurando o trabalho patogênico.

A precarização passou a ser um atributo central do trabalho contemporâneo e das novas relações de trabalho, apresentando múltiplas faces e dimensões.

(4) Por exemplo, o trabalhador – ex-empregado ou não – que vira cooperado ou prestador de serviços terceirizado – autônomo ou sob a forma de empresa/pessoa jurídica – perde o estatuto de assalariado do núcleo estável da empresa contratante e, consequentemente, os direitos trabalhistas básicos ou aqueles decorrentes dos acordos coletivos da categoria à qual não pertence, dado a sua forma de contrato.
(5) Conforme Castel (2009, 1998), Bourdieu (2001, 1998, 1997), Harvey (1992), Appay e Thébaud-Mony (1997), Antunes (2002, 1999), Antunes e Braga (2009), Druck (1999), Druck e Franco (2007), Hirata e Préteceille (2002), Franco (1997), dentre outros.

¹ Pesquisadora do Centro de Recursos Humanos da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia (CRH/FFCH/UFBA), Salvador, BA.

² Professora Adjunta do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal da Bahia (FFCH/UFBA); Pesquisadora do CRH/FFCH/UFBA, Pesquisadora do CNPq. Especialista na área de Sociologia do Trabalho, Salvador, BA.

³ Médica psiquiatra com especialização em Saúde Pública. Docente aposentada da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.

Fonte: Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, São Paulo, 35 (122): 229-230, 2010

Comentários: Este blog se propõe, no decorrer desses próximos dias, trazer à luz da blogosfera a discussão sobre questões pertinentes mais diretamente à realidade das pessoas, do trabalhador, das organizações e das relações destas com outras e entre si, que não apenas se iludir com promessas de paraíso promovidas por gurus e experts tais, no mais das vezes, completamente desconectados da realidade que os cercam. 

Não há que ser pessimista, pois os otimistas levam a grande vantagem de sofrer apenas no final. Mas, convém manter os pés no chão, e um pouco de realismo crítico não faz mal a ninguém. 

Pelo contrário, pode até mesmo servir de instrumento profilático de degenerescências mentais - literalmente -, sobretudo àqueles mais embebedados com as  novidades tecnológicas e alucinados pelas inócuas e ineficazes receitas mágicas de gestões.

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